RIBEIRO, REGO, ROSA E ROCHA: AFINIDADES ELETIVAS
Muitas vezes
afirmamos que a língua portuguesa é a única língua moderna a ter criado três
epopéias: Os Lusíadas, Os sertões e Grande sertão: veredas. Uma em verso, no século XVI, e duas em
prosa, no século XX. É certo que só Camões a escreveu dentro dos cânones
estritos do gênero, mas o titanismo, o caráter bélico e o pathos épico que dominam a narrativa histórico-militar de Euclides
da Cunha e o romance de Guimarães Rosa fazem com que ambos os livros, para nós,
existam emocionalmente como epopéias, o que nos importa muito mais do que a
discussão sobre gêneros literários.
O
que é inegável é que são eles os dois grandes livros nacionais do Brasil,
respectivamente a sua Ilíada e a sua Odisséia, assim como Os Lusíadas são a Eneida de Portugal, como bem disse Borges em soneto a Camões:
Pois se esse
livro cruento, Os sertões, narrando a
queda da “Tróia de taipa dos jagunços”, faz bem as vezes da primeira, Grande sertão: veredas, essa demanda
sublime pelo amor, pelo conhecimento e pela vingança é sem dúvida a
possibilidade brasileira da segunda. Como Ulisses no seu atribulado retorno, o
jagunço Riobaldo navega pelos infinitos e ínvios caminhos do sertão, plenos de
tentações físicas e sobrenaturais, na busca do restabelecimento da ordem, do
apaziguamento final, só conseguidos após a destruição da potência maligna
representada por Hermógenes, tal como o grego só os conseguiu após o massacre
dos pretendentes e de seus próximos.
Quanto
ao sempre discutido e comumente mal interpretado estilo de Guimarães Rosa, foi
ele o genial criador de uma espécie de expressionismo lingüístico onde
violentas deformações da base já muito requintada que é a expressão oral do
sertanejo brasileiro conseguiram atingir sínteses artísticas e emocionais
espantosas. Expressionismo, no caso de Grande
sertão: veredas, é uma palavra chave, definidora dos processos que criam o
corpo lingüístico dessa narrativa única, gerada do que podemos chamar uma
memória traumática, sustentada e ocultada genialmente por meio milhar de
páginas, ainda que já presente desde a epígrafe hipnótica, mântrica, “o diabo
na rua, no meio do redemunho”, síntese da cena-ápice que desvela e resolve toda
a trama. É mais do que sabido o fundo de romances de cavalaria, do romance viejo ibérico, que se encontra
no mundo arcaico de Grande sertão:
veredas, bastando recordar os célebres versos de um dos mais conhecidos
romances lusitanos: “Os olhos de Dom Varão / São de mulher, de homem não”. Mas
se falarmos especificamente da matriz lingüística da mais característica prosa
roseana – criada em Sagarana,
desenvolvida em Corpo de Baile,
levada ao ápice em Grande sertão: veredas
e na novela póstuma “Meu tio o
Iauaretê”, e mitigada nos dois admiráveis livros que sucederam ao romance monumental
- não duvidamos que a primeira e mais direta influência na criação dessa
linguagem encontra-se na obra do grande escritor português Aquilino Ribeiro.
Não há artista sem ascendência, sem genealogia, por mais original que seja. Não
há Beethoven sem Haydn, não há Augusto dos Anjos sem Cesário Verde, não há
Serguei Eisenstein sem Griffith.
Na biblioteca
relativamente modesta de Guimarães Rosa encontravam-se três livros de Aquilino
Ribeiro, de acordo com o levantamento de seu conteúdo feito por Suzi Frankl
Sperber em Caos e cosmos, leituras de
Guimarães Rosa, no ano de 1976: Uma
luz ao longe, edição de 1948; Cinco
réis de gente, a 4ª edição, sem data, e Estrada
de Santiago, sétimo milheiro, de
1924. O Malhadinhas, novela de cerca
de cem páginas, que apareceu pela primeira vez neste último volume, Estrada de Santiago, sendo mais tarde,
em 1949, publicada individualmente, é o marco da mais profunda afinidade
genésica com a prosa de Grande sertão:
veredas. Trata-se de uma obra de Aquilino Ribeiro na sua feição mais típica
de grande regionalista beirão, o mesmo de Terras
do Demo e Quando os lobos uivam,
prosador cuja transfiguração do linguajar popular de sua região sempre foi
julgada de leitura difícil, inclusive para os próprios portugueses, o mesmo que
ocorreu com Guimarães Rosa no Brasil
A confrontação
de alguns parágrafos dessa novela genial, O
Malhadinhas, escrita no início da década de 1920 e toda narrada na primeira
pessoa, com outros parágrafos de Grande
sertão: veredas nos parece implacavelmente comprobatória, embora no Brasil
quase só se fale de James Joyce em sua genealogia, autor radicalmente afastado
do transbordamento emocional de Guimarães Rosa, ainda que usuário de certos
processos que sem dúvida serviram ao amálgama do fabuloso mestre de Cordisburgo.
Em
resumo, escutemos – e o verbo escutar nos parece mais importante, neste caso,
do que o verbo ler – alguns parágrafos da prosa de Aquilino Ribeiro em O Malhadinhas, história da vida de um
almocreve beirão, valente e brigador, contada por ele mesmo:
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“Ah, velha
Barrelas dum sino! Tomara-me eu outra vez com vinte anos e saber o que hoje
sei! Diabos me levem se não fosse rei. Mas rei a valer, e nenhum rei de copas,
ali... de cetro em punho, todos ajoelhados diante de mim a lamber-me os butes,
sabendo o que era, pois rei era eu sem o saber. Que menos, com o rapariguedo à
volta: Antoninho, cravo roxo! saúde de cavalo, açafate o que se chama farto,
caminhos desimpedidos?!”
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“Mas saber ler
não basta para ser fino, ser cavalheiro, e muito menos ser feliz. Eu só tarde,
moço do senhor vigário, estudei letra redonda. Salamanca a uns sara, a outros
manca, olhem, meus senhores, ainda não me apontava o buço e já por minhas
próprias e boas artes era dono dum machito, tão bom para estardiota como para
carga, de jarretes rijos como aço, só um pouco rifador o dianho: o frade
missionário que mo vendeu tinha três dentes estoirados dum senhor coice que lhe
pregou. Deu-me na fantasia para pôr-lhe campainhas castelhanas na barbela,
cornachas de cores acima das orelhas, franjas na retranca , eh! parecia mesmo a
cavalgadura dum bispo! Eu de riba dele e, tepe, tepe, por aqueles povos de
Cristo, mais veloz que o raio, ouvia vozear das portas: “Lá vai o Diabo para
fora da terra!” Adiante, antes chalaças que chumbada!...”
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“E ia
trocá-las pelo azeite, a azeitona, o linho em adeitos, a termos de Penedono, e
destas recovagens umas por outras, quatro libras, andavam em voga as de
cavalinho, dançavam no saco. Nada se me punha pela frente, nem a noite, nem as
invernias, nem os ladrões das estradas, qual o quê! Com latim, rocim e florim
andarás mandarim.”
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O
parentesco estilístico e estético é inegável. Passaremos, agora, às afinidades
eletivas entre o grande mestre de Cordisburgo e um genial artista brasileiro de
outra arte, Glauber Rocha.
Em 1962,
quando, aos 23 anos de idade, Glauber Rocha dirigia o suplemento cultural do Diário de Notícias de Salvador, antes
mesmo de lançar o seu primeiro longa-metragem, Barravento, recebeu ele de Guimarães Rosa, sem qualquer pedido ou
aproximação, a um exemplar de Primeiras
estórias com a seguinte dedicatória:
A GLAUBER ROCHA
com o grato, vivo apreço,
muito cordialmente,
do
Guimarães Rosa,
Rio, setembro, 62
Tratava-se
do mesmo Guimarães Rosa que, quinze anos depois, em 1977, Glauber Rocha transformaria
em personagem do seu quase romance Riverão
Sussuarana, que, mesmo no título, marca o influxo direto do autor de Corpo de baile. Sem a menor dúvida,
existe uma influência subterrânea, mas definidora, de Guimarães Rosa em Deus e o Diabo na Terra do Sol, outra
das obras mais altas não só da arte brasileira como da arte brasileira que
interpreta e tenta compreender o Brasil. Assim como houve uma influência
criadora do beirão Aquilino Ribeiro sobre o mineiro Guimarães Rosa, o influxo
deste passou para o baiano Glauber Rocha, agindo sobre a visão glauberiana do
cangaço, fenômeno especificamente nordestino.
Guimarães Rosa
é mineiro, objetar-me-ão, mas a verdade é que, na estrutura dos bandos de
jagunços em guerra, após o assassinato de Joca Ramiro, em Grande sertão: veredas, sente-se uma organização social e militar
muito mais próxima da que conhecemos como cangaço, pela independência,
sobretudo, dos seus membros, do que na de qualquer jagunscismo histórico
daquele mais sonhado do que real norte de Minas, próximo da Bahia e de Goiás. É
sintomático disso, aliás, uma declaração de Ferreira Gullar, não compreendendo,
diga-se de passagem, a altitude da obra, ao lê-la, em 1956, definindo-a como um
“romance de cangaceiros para lingüistas”. A verdade é que Rosa, homem de
cultura universal e artista literário ímpar, unificou as mais variadas
influências, a começar pelo português e a sintaxe de Aquilino Ribeiro, a grande
fonte primária, como já afirmamos, de sua prosa em Grande sertão: veredas, que sempre ficou oculta pela pretensa
influência de James Joyce, autor de uma cerebralidade a 180º do emocionalmente
espasmódico homem de Cordisburgo, para desgosto de muitos dos numerosos
pedantes anglicizados que pululam em território brasileiro. Se Guimarães Rosa
lançou mão de alguns processos joycianos na sua escritura expressionista e
barroca, o que é verdade, esses assinalam o final e não a gênese do seu livro
insuperável. Mais importante, porém, do que qualquer estrutura paramilitar
realmente mineira, na definição estrutural sociológica do bando de jagunços do
livro, foi o cangaceirismo nordestino.
Guimarães Rosa
é um dos poucos artistas brasileiros que poderia fazer sua a declaração quase
goethiana de Serguei Eisenstein: “Não sou um realista; afasto-me do realismo
para atingir a realidade”, a mesma que se prestaria à perfeição à trajetória
pictórica de um Van Gogh. Tal caminho, por outro lado, foi o mesmo tomado por
Glauber Rocha, o transfigurador máximo da realidade brasileira em arte
cinematográfica.
As origens dessa trajetória artística podem ser
rastreadas num documento dos mais interessantes, a ingênua e admirável carta
escrita para seu tio Wilson Mendes de Andrade em 15 de janeiro de 1953. Nela,
aos treze anos de idade, Glauber demonstra, de maneira clara, a importância
fundamental da literatura na formação de sua visão do mundo, e as suas
veleidades de caldear para a própria a sua nascente ânsia de expressão, isso
pouco antes de começar a falar sobre cinema e filosofia. Faltava-lhe, no
entanto, nesta leitura precoce, o encontro decisivo com Sagarana, o único livro até então publicado por Guimarães Rosa:
“Quanto a Poe e Kipling já os li. O segundo melhor
do que o primeiro (opinião minha!). E aquela poesia ‘Se’ é o que de mais belo
pode haver em matéria de filosofia mas que considero, assim por dizer,
impraticável. Às vezes chego a duvidar do autor de Mowgly, o Menino Lobo,
Kim e outros... Bem, duvidar porque acredito que ele não seguia os
mandamentos que escreveu em ‘Se’ e assim sendo seria... Bem, não pretendo e não
estou à altura de criticar o grande poeta e escritor Rudyard Kipling. Mande-me
tua opinião acerca dele. Quanto a aprender e observar as coisas, obrigado;
saberei de hoje em diante observá-las melhor.
Tio, se algum dia tornar-me escritor fique certo que
escreverei sobre minha terra. Saiba que também prefiro os escritores
brasileiros aos europeus. Não que tenha vasta cultura literária, a ponto de
querer compará-los, mas prefiro conhecer antes a filosofia de meus patrícios
para depois conhecer a dos europeus. Não quero dizer com isto que Dickens,
Stevenson e outros são maus escritores.
Li Terras do sem-fim, de Jorge Amado, e achei
mais do que ‘realista’. A sua linguagem poder-se-ia dizer quase imoral.
Virgílio, Margot, Ester, Juca Badaró são sem dúvida personagens que cativam o
leitor, porém nunca como o Eugênio, a Olívia, a Dora e o Simão, a Eunice e
todos os outros personagens de Veríssimo em Olhai os lírios do campo; o
li de uma só vez, tal o seu poder de atração, e pretendo relê-lo para sentir
novamente a tragédia íntima de Eugênio e pensar na existência.
Quero confessar-te uma coisa: às vezes pareço-me com
Eugênio, às vezes sinto o irrefreável complexo de inferioridade. São coisas da
vida, creio que todos nós temos um pouco de Eugênio em nossas almas.”
Para além da demonstração mais ou menos clara de já
se tratar de um indivíduo destinado à arte, é importante notarmos a primeira
frase do segundo dos parágrafos citados, a que se refere a escrever “sobre a
minha terra”. A condição de Glauber Rocha como artista especificamente
brasileiro, no sentido em que também o foram um Villa-Lobos ou um Guimarães
Rosa, já está toda aí. É óbvio que é possível ser um supremo artista com a obra
menos nacional possível, ou um nacionalíssimo desastre. Um Machado de Assis é muito
mais carioca do que brasileiro, mas não creio que a sua obra diminuísse em nada
tendo ele nascido em Londres, Nápoles ou São Petersburgo. O Ateneu, de
Raul Pompéia - escritor que tem espantosas afinidades formais e humanas com
Euclides da Cunha - seria o romance genial que é em qualquer nacionalidade a
que se transferisse. Os grandes poetas simbolistas do Brasil, um Cruz e Sousa e
um Alphonsus de Guimaraens, poderiam ter feito obra semelhante em variadas
geografias. Limite, de Mário Peixoto, sendo a mais bela captação jamais
realizada da paisagem praieira fluminense, com a sua luz, suas redes, suas
estradas de terra, casas coloniais e vegetação característica, poderia existir,
pela universalidade de sua concepção, em qualquer litoral do mundo. Mas como imaginar,
fora do Brasil, um Euclides da Cunha, um José Lins do Rego ou um Guimarães
Rosa, ou o Villa-Lobos da parte mais importante da sua imensa obra? O mesmo com
Glauber. Como o Anteu da lenda, perdia força ao levantar os pés da terra-mãe, e
se há sem dúvida o que admirar no quase surrealismo hierático de Cabeças
cortadas, na plasticidade panfletária de O leão de sete cabeças ou
em Claro, a verdade é que o maior de sua obra sempre foi feito no
Brasil, desde Pátio, o menos nacional dos curtas, até A idade da
Terra.
Parte dessa sua feição rigorosamente brasileira
consolidou-se pelo contato com a literatura, especialmente a dos três nomes
citados acima, os autores de Os sertões, Fogo morto e Sagarana.
Sobre Euclides da Cunha não é preciso falar mais.
Existe, a rigor, um Brasil de antes e um de depois de Euclides.
Independentemente da força genial do seu livro vingador, força tal que a sua
definição de gênero - ensaio, reportagem, livro de história, obra militar,
estudo sociológico, epopéia?, próximo do
que ocorre, aliás, com Grande sertão: veredas - nunca alcançou
um termo consensual, levada de roldão pelo hibridismo monolítico e
impressionante do todo, podemos reafirmar que o Brasil moderno, ou seja, o
duvidosamente moderno e paradoxal Brasil que todos hoje conhecemos e
reconhecemos, foi uma invenção de Euclides da Cunha, um desses espantosos
descobridores do óbvio, e dotado da força moral necessária para esfregar esse
óbvio na cara limpa das eternas elites eufêmicas de sua pátria.
Mais do que Euclides e Guimarães, porém, de acordo
com João Carlos Teixeira Gomes, amigo íntimo de Glauber desde a adolescência e
seu biógrafo, foi de importância fundamental na formação da sua visão sobre o
Nordeste a leitura de toda a obra de José Lins do Rego, na edição em doze
volumes lançada em 1956 pela editora José Olímpio, o mesmo José Lins a quem
Rosa aconselhara: “Reescreva”, tendo por resposta: “Cria quem pode, burila quem
tem paciência”. Sobre o autor de Menino de engenho escreveu Glauber o
artigo “Romance de José Lins do Rego” no segundo número da revista Mapa,
em 1957, do qual reproduzimos um parágrafo:
“Nele existe a cantoria dos pássaros e o verde da
terra. Em um gesto de pena, colhendo uma paisagem e um drama, entra pelo
coração com a força do vento sadio, forte. Não é apenas um fotógrafo, um
memorialista; traça, com hábeis domínios, o Nordeste do senhor de engenho e do
cangaceiro. Assim, ultrapassa a lembrança numa criação de heróis, num
levantamento de mitos.
Se sempre, na gênese de Deus e o Diabo na
Terra do Sol, tanto na concepção geral do filme como em seu texto, os nomes
mais lembrados como referências seminais foram os de Euclides da Cunha e
Guimarães Rosa, a fonte mais direta foi de fato José Lins do Rego, sobretudo o
dos romances Pedra Bonita (1938) e Cangaceiros (1953). Vale a
pena lembrar, inclusive, que Glauber foi produtor, junto com o diretor do
filme, Walter Lima Júnior, de Menino de engenho, em 1965. Toda a
dicotomia beatério / cangaço já se encontra muito bem definida no primeiro dos
romances citados:
“- É a desgraça do Açu, Seu Vigário, é aquela gente. O
povo de lá só vive assim: quando não cai no cangaço, é no fanatismo. Eu não
queria dizer nada, mas quando vi o senhor tomar aquele menino para criar,
fiquei dizendo pra mim mesmo: ‘Padre Amâncio está criando uma cobra’”.
Outra relação, muito explícita no filme, que
poderíamos chamar de metonímica, ou antes heráldica - ou armorial, como diria
Ariano Suassuna - é a que estabelece o conflito através dos símbolos
instrumentais das duas categorias, a dos fanáticos e a dos cangaceiros, ou
seja, através do rosário, do rifle e do punhal. Assim se expressa Corisco, na
fala magistral em que narra para Manuel o encontro de Lampião com o beato
Sebastião - o mesmo nome do santo no romance Pedra Bonita - após saírem
derrotados de uma refrega no Raso da Catarina:
“Aí cortamos o dia e a noite, quando de longe
apareceu Sebastião, sozinho e com fome. Tinha deixado os padres no Ceará e
fazia a mesma penitência de Nosso Senhor Jesus Cristo. Meteu a mão na frente,
foi dar socorro a Lampião. Cuidava das feridas e mandou Virgulino deixar o
cangaço pra não morrer. Virgulino não teve medo e invocou o Padim Ciço. Sabe o
que Sebastião respondeu? Que Padim Ciço era inimigo de Deus, que Deus era ele!
E aí quis tirar as armas de Lampião, botar uma cruz no lugar.
- Se arrespeita, Santo safado!
Lampião bateu, chutou, cuspiu na cara dele!... Homem
nesta terra só tem validade quando pega nas armas pra mudar o destino. Não é
com rosário não, Satanás. É no rifle e no punhal!”
É a mesma ambiência das falas da velha Josefina para
o seu filho, o cangaceiro Aparício, na primeira parte de Cangaceiros:
“- Meu filho Aparício, Deus te mandou pra que o
nosso povo saiba mesmo que a maldição não parou. O teu rifle não pode mais que
o rosário do Santo. A tua força faz tremer o sertão. É a força dos malditos da
nossa raça, da raça do teu pai que a terra vai comer. Tu, Aparício, não pára
nunca. E me deixa, meu filho, me deixa com os últimos anos desta vida. Eu quero
viver até o fim, eu quero carregar esta cruz nas costas, Aparício. Vai pro
Santo e pega com ele um taco da força que ele tem. A tua força, Aparício, é a
do sangue que corre nas tuas veias, é a força do teu avô, o home que era mais
duro que o pau-ferro. Vai beijar a mão do Santo, Aparício. Que ele passe a mão
no teu rifle, que ele toque no teu punhal, para ver se assim Deus possa entrar
no teu corpo ruim.”
Ou ainda:
“- Aparício, meu filho, para aqui não vieste para
acabar com a tua mãe, para matar a tua mãe, para cuspir na cara da tua mãe,
para pisar a madre que te pariu. Aparício, meu filho, ali está a força que pode
mais que o teu rifle, uma coisa que fere mais no fundo que o teu punhal. Vai
para ele, Aparício.”
O fantasma onipresente da guerra de Canudos, que
perpassa por Deus e o Diabo na Terra do Sol nas falas de Antônio das
Mortes e do Cego Júlio, encontra-se igualmente nos personagens de Pedra
Bonita:
“- Então Bento, a Pedra virou outra vez terra de
santo?
Todos sabiam que ele era de lá. Disse ele o que
sabia dos fatos.
- Vai haver desgraça feia - continuou o sujeito. - O
governo não pode deixar o negócio crescer. Senão vira Canudos.
- É mesmo - atalhou um segundo. - Só bala de soldado
liquida isto. Agora não pensem vocês que com vinte braços se faz o serviço.
Sertanejo, quando acredita em santo briga como onça.”
E no magistral plano-seqüência da invasão da casa do
Coronel Calazans, em Deus e o Diabo na Terra do Sol, que termina no
momento em que Corisco destrói um piano a coice de rifle, é possível relembrar
um detalhe da invasão do engenho do Coronel Lula de Holanda por Antônio
Silvino, à procura do ouro escondido, em Fogo Morto (1943), indubitável
obra máxima do autor:
“- Capitão, é capaz de o dinheiro estar escondido no
instrumento.
- É verdade. Vire o bicho de papo para cima.
Estenderam no meio da sala o piano de cauda que o
capitão Tomás trouxera do Recife. Parecia um grande animal morto, com os pés
para o ar. Um cangaceiro de rifle quebrou a madeira seca, como se arrebentasse
um esqueleto.”
Mas se a grande
influência literária factual sobre a obra de Glauber Rocha, como já afirmamos,
foi a de José Lins do Rego, a de Guimarães Rosa foi uma decisiva influência de pathos,
difusa e muito mais difícil de ser documentada. Ironicamente, a grande
obra-prima cinematográfica adaptada da obra de Guimarães Rosa – e ainda durante
sua vida - foi a magistral versão de A
hora e a vez de Augusto Matraga, de outro diretor, Roberto Santos, em 1966.
Trata-se, sem o menor favor, de uma das mais admiráveis adaptações literárias
da história do cinema mundial – uma daquelas que gera uma obra de valor
intrínseco, independente da fonte literária, como a Mãe, de Pudovkin, em 1926, que, aliás, como obra de arte, supera,
em muito, o romance de Gorki que lhe serviu de inspiração. O mais interessante
é que a influência de Deus e o Diabo na
Terra do Sol, filme dois anos anterior, é inegável na obra-prima de Roberto
Santos a partir da novela roseana.
Quando, em 1967, a censura da ditadura
militar proibiu Terra em transe – do
que voltaria atrás, poupando o país de um episódio vergonhoso -, disse
Guimarães Rosa, no Conselho Nacional de Cultura: “Somos entidade nova e não
podemos nos apresentar assim protestando, mas podemos passar cheque ao portador
ao Glauber Rocha, que é meu amigo pessoal e tem aspectos geniais”.
A expressão
“veredas do sertão”, que remete diretamente ao livro insuperável de Guimarães
Rosa, encontra-se exata na narração in
off do cantador mítico, entre a morte do Santo Sebastião e o encontro com
Corisco, em Deus e o Diabo na Terra do
Sol:
Da morte de
Monte Santo
sobrou Manuel
Vaqueiro
por piedade de
Antônio,
matador de
cangaceiro.
Mas a história
continua,
preste lá mais
atenção,
andou Manuel e
Rosa
nas veredas do
sertão,
até que um
dia,
pelo sim e
pelo não,
entrou na vida
deles,
Corisco...
o diabo de
Lampião.
Podemos notar
nesses versos, compostos por Glauber Rocha, autor absoluto de seus filmes, e
musicados por Sérgio Ricardo, o claro influxo roseano, tanto na presença
diabólica – não nos esqueçamos que Manuel será rebatizado “Satanás” por Corisco
– como na imagem das “veredas do sertão”, ainda que esta possa ser encontrada,
igual ou aproximadamente, em autores anteriores a Guimarães Rosa, no velho
Afonso Arinos de Pelo sertão, em Hugo
de Carvalho Ramos – um dos únicos verdadeiros antecessores de Guimarães Rosa,
que se matou aos 25 anos, pouco depois de publicar o admirável, sob todos os
aspectos, Tropas e boiadas -, ou até
no esquecido paraibano Carlos Dias Fernandes, em seu romance autobiográfico Fretana, publicado em 1936.
Em
suma, tudo o que aqui falamos são pequenas veredas do imenso labirinto da
sensibilidade humana, que une os grandes e afasta os medíocres. E para terminar
esta breve comunicação que passa por Ribeiro, Rego, Rosa e Rocha, em
homenagem ao segundo e a Arnaldo Saraiva, seu profundo admirador e conhecedor,
leremos este nosso soneto velho de mais de uma década, que justamente se
intitula:
GUIMARÃES
ROSA
Por detrás da
gravata ele trazia
O sangue de
animais, homens e auroras,
A terra a se
evolar na chuva fria
E as sádicas
estrelas das esporas.
Sob o terno
uma lua irreal luzia,
Torrentes
erodiam vales e horas,
E a mata verde
e gorda deglutia
Corpos hirtos
e inertes como toras.
Sobre os
sapatos uivos e estampidos
Vazavam o
alvejar das madrugadas
Prenhes das
tramas torpes dos descridos.
Atrás das
lentes, a esperança e a sorte
Batiam-se
entre o pó das cavalgadas
Sujas de
barro, de alegria e morte.
Alexei
Bueno
Olá Alexei, é J. David, das Aquarelas do Rio. Fiquei feliz em saber que você tem um blog. Parabéns! Se você tiver acesso abra no meu facebook esse link. Abraços! https://www.facebook.com/joaodavid.dossantosaraujo/media_set?set=a.1949825481939739&type=3&pnref=story
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