A
DEGRADAÇÃO DA ARQUITETURA IMPERIAL CARIOCA
Nada
mais natural, numa cidade e num estado falidos e onde o poder foi empalmado por
máfias, de que a degradação, em todos os níveis, se espalhe por toda parte. Quem
tiver estômago forte para caminhar pelo Centro do Rio de Janeiro numa tarde de
fim de semana, terá a impressão, em relação à população de rua, que se encontra
nalguma metrópole da Índia, isso em meio a serviços de qualidade sórdida, colapso
geral do comércio, imundície ubíqua, depredação de monumentos públicos,
conservação de vias e equipamentos urbanos inexistente. Sobra ao Rio de Janeiro
a sua paisagem, vasta demais para ser destruída pela ação humana – embora esforço
neste sentido nunca tenha faltado – donde concluímos que, por mais que se fale
em turismo – o pífio turismo brasileiro, que não atrai, do Oiapoque ao Chuí, um
décimo dos visitantes que vão a Paris num período idêntico – só ingênuos ou
masoquistas podem, na atual conjuntura, sair de lugares civilizados para
conhecer esta cidade, e isso sem nem mencionarmos a violência generalizada e os
preços aberratórios.
Se
toda esse miséria pode ser revertida, e, pela lei do “não há mal que sempre
dure”, oxalá que ela o seja, o que for perdido do patrimônio histórico-arquitetônico
da cidade não voltará nunca mais. Como pródromos da situação a que nos referimos,
podemos relembrar a demolição – pois de demolição se tratou – do Solar do Visconde
de São Lourenço, nas esquinas da Rua do Riachuelo com Inválidos - no caso não uma
obra imperial, mas o melhor exemplar de arquitetura residencial do Reinado no
Rio de Janeiro - isso apesar de tombada federalmente desde 1938, ano inicial
dos tombamentos do futuro IPHAN. Tal mansão, construída pelo Conselheiro
Francisco Bento Maria Targini, Barão em 1811 e Visconde em 1819, Tesoureiro-Mor
do Real Erário no Brasil, ou seja, uma espécie de Ministro da Fazenda de D.
João VI, chegou perfeitamente intacta até a década de 1990, quando um providencial
incêndio serviu de pretexto a sucessivas e literalmente criminosas demolições
parciais que a transformaram no que é hoje, um estacionamento cercado por restos
de paredes arruinadas. Tal solar, onde certos elementos neoclássicos iniciais podiam
ser percebidos numa morfologia ainda colonial, teria sido salvo com a colocação
de uma simples
cobertura emergencial sobre a parte do telhado destruída pelo incêndio. Após a
queda completa deste, um banal trabalho de escoramento teria mantido de pé
todas as fachadas. A mais absoluta inércia acabou redundando na sua quase
completa destruição.
Adentrando
agora o período realmente imperial, vale a pena lembrar o abandono – ainda que
aparentemente mantenha a sua integridade – da magnífica Casa da Marquesa de
Santos, em São Cristóvão, uma das mais belas residências do país e com um valor
histórico obviamente inapreciável. Resultado da adaptação de dois sobrados já
existentes por Jean Pierre Pézerat, o arquiteto
pessoal de D. Pedro I, executada entre 1824 e 1827, com pinturas internas de
Francisco Pedro do Amaral e adornos em estuque dos irmãos Marc e Zéphyrin Ferrez,
tal conjunto faz dela uma das joias do acervo carioca. Décadas mais tarde o
palacete pertenceu ao Barão de Mauá e ainda abrigou o Serviço Nacional de Febre Amarela. Em 1979 nele foi inaugurado o em péssima hora extinto Museu do Primeiro Reinado, sendo destinado depois, por político cujo nome nem merece citação, a abrigar certo Museu da Moda, que nunca existiu.
Chegamos agora ao fulcro deste pequeno texto, duas das mais belas residências neoclássicas do Rio e do país em pleno processo de arruinamento. De início o célebre Solar dos Abacaxis, na Rua Cosme Velho, construído na década de 1840 pelo Comendador
Borges da Costa, com traço atribuído a José Maria Jacinto Rebelo, um dos mais prestigiosos alunos de Grandjean de Montigny. Essa magnífica residência, que pertenceu durante muitos
anos ao casal Marco e Ana Amélia Carneiro de Mendonça, e cujo interior, até a
década de 1990, abrigava um verdadeiro museu, tendo sido tema, inclusive, de um
opúsculo de Luiz Heitor Corrêa de
Azevedo, Música do tempo desta casa, se
encaminha a largos passos para o estado de ruína, visto que, posta a venda
pelos herdeiros, não encontrou provavelmente interessados entre os membros da
elite econômica carioca, em sua maciça maioria de proverbial ignorância e irretocável
mau gosto.
Caso bem mais grave,
pela riqueza sem comparação do seu interior, é o do Palacete São Cornélio, na
Rua do Catete. Construído em 1862 pelo próspero comerciante José Ribeiro da
Silva, foi, após a morte deste, ocorrida seis anos mais tarde, comprada por João Martins Cornélio dos Santos, casado com Cecília de Sousa Breves – membro
de uma das mais ricas famílias de cafeicultores do Brasil de então ao lado
daquela do Barão de Nova Friburgo – e grande amigo de Castro Alves, tão amigo
que foi em outra casa sua, na Rua Silva Manuel, atual André Cavalcanti, que o
grande poeta amputou o pé, em 1869, depois do desgraçado acidente de caça em que
se feriu gravemente em São Paulo. Doado por João Cornélio em testamento, no ano
de 1894, à Santa Casa da Misericórdia, para abrigar um orfanato, transformou-se
então no Asilo São Cornélio. Tombado pelo IPHAN em 1938, abrigou a Faculdade de
Medicina Sousa Marques da década de 1970 até o ano 2000, quando foi deixado ao
abandono pela instituição sua proprietária, crescentemente dilapidada, como é
de conhecimento público e notório, por lamentável malversação de recursos.
Esse palacete, cujo
apuro interno e externo só encontra rival, em sua cidade, no bastante próximo Palácio
do Catete, encontra-se à beira do arruinamento total, com seus magníficos tetos
pintados, seus elementos em bronze e mármore de Carrara que já sofreram
audaciosa tentativa de pilhagem, seus vitrais, azulejos e grades em ferro
fundido, sem que a Santa Casa, o IPHAN ou qualquer órgão público tenha
executado, até este momento, qualquer ação efetiva para o seu salvamento.
E em tal estado se encontra
parte importante e insubstituível do patrimônio arquitetônico carioca, esquecida
em meio ao odor compósito de lixo, urina e fezes que se espalha dia a dia pela
Cidade Maravilhosa.
Alexei Bueno
Belo artigo parabéns
ResponderExcluirUma lástima que se permita a degradação desses tesouros arquitetônicos.
ResponderExcluirEm meio a tanta destruição na antiga cidade-estado, mais este verdadeiro crime. Triste!
ResponderExcluirEsse artigo merece maior divulgação, além deste blog. Que tal enviá-lo ao Globo?
ResponderExcluirObrigada por se importar. Posso pedir sua atenção para o prédio que abrigou o Automóvel Clube do Brasil, no Passeio? Existe um projeto para restauro e os proponentes, através de um processo da prefeitura, conquistaram o direito de posse e no entanto o atual prefeito inventou mais um projeto mirabolante, desses que nunca saem do papel, e estão impedindo o grupo a tocar o projeto. Que aliás, tem tudo a ver com a história do prédio. Seria o Museu do Rodoviário ou do Automóvel, não sei exatamente. Um projeto lindo desenvolvido pela arquiteta Maria Parkinson, neta de um dos fundadores do ACB e o proprietario da marca.
ResponderExcluirMeu caro Papel de Roça,
ExcluirMuitíssimo bem lembrado - pois entra perfeitamente no tema deste artigo - o caso do prédio do Cassino Fluminense, antigo Automóvel Público, que estava em muito bom estado enquanto abrigava um bingo, quando eles foram proibidos pelo nosso ínclito Governo Federal, sendo mais tarde comprado pela Prefeitura, oficialmente para abrigar uma biblioteca, depois uma Casa do Samba - esta proposta é infalível para cada prédio histórico sem uso no Rio de Janeiro - até finalmente não receber utilização alguma. Quanto à ideia de Museu do Automóvel, creio que ninguém percebeu uma coisa óbvia, o prédio não tem dimensões, sobretudo profundidade, para tanto. Um Museu do Automóvel (a não ser que se limite a miniaturas!) exige uma área gigantesca, é o mesmo caso do Museu Aeroespacial. O mínimo que se espera de um Museu do Automóvel é que tenha automóveis no seu acervo, a não ser que se limite a um desses ridículos "museus" virtuais, sem acervo nenhum, onde a função do público é bolinar telas de computador, coisa que, aliás, anda muito na moda.
Grande abraço,
Alexei
Desculpe, do Rodoviarismo.
ResponderExcluirExcelente matéria. Volte ao assunto, pois ainda temos muito patrimônio, que o Estado não assume responsabilidade.
ResponderExcluirRatificamos o comentário acima (Papel da Roça), sobre o ACB do Passeio.
ResponderExcluirEu moro quase de frente.para o casarão da esquina da Inválidos com Riachuelo e vi o tal incêndio quando era crianca. Uma tristeza danada ver as ruínas todos os dias.
ResponderExcluirAlexei Bueno é realmente triste acompanhar o descaso com o nosso patrimônio público.Se você me permite gostaria de incluir mais três monumentos que estão também em ruínas,ambos de grande valor histórico. 1º o museu do trem no Engenho de Dentro,2º a igreja do Bonfim em São Cristóvão e 3º a estação da Leopoldina,também em São Cristóvão>
ResponderExcluirAlexei Bueno é realmente triste acompanhar o descaso com o nosso patrimônio público.Se você me permite gostaria de incluir mais três monumentos que estão também em ruínas,ambos de grande valor histórico. 1º o museu do trem no Engenho de Dentro,2º a igreja do Bonfim em São Cristóvão e 3º a estação da Leopoldina,também em São Cristóvão>
ResponderExcluirAlexei Bueno é realmente triste acompanhar o descaso com o nosso patrimônio público.Se você me permite gostaria de incluir mais três monumentos que estão também em ruínas,ambos de grande valor histórico. 1º o museu do trem no Engenho de Dentro,2º a igreja do Bonfim em São Cristóvão e 3º a estação da Leopoldina,também em São Cristóvão>
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