VINICIUS
DE MORAES E O CINEMA
Ao
nascer, no dia 19 de outubro de 1913, no então bucólico bairro carioca da
Gávea, Marcus Vinicius de Moraes, o futuro poeta Vinicius de Moraes, ou
simplesmente Vinicius para todos os brasileiros, chegava ao mundo num momento
que poderíamos chamar de adolescência do Cinema, arte que seria uma das
fascinações máximas de toda a sua vida. Se o seu belo nome romano nos remete a
muitos personagens de filmes épicos passados na Antiguidade clássica, em sua
grande maioria italianos - o famoso gênero peplum
que faria a fortuna da Cinecittà – o
ano de seu nascimento, 1913, marcava literalmente a maioridade do cinema, ao
menos como invenção, pois nele completaram-se os dezoito anos da imortal sessão
de 28 de dezembro de 1895, no Grand Café,
esquina do Boulevard des Capucines com a Rue Scribe, em Paris.
Nossos
olhos, saturados desde a primeira infância pela imagem em movimento, prejudicam
um pouco nosso entendimento do que significou tal revelação para os que lá
estavam presentes, e isso ainda a muita distância da transformação de um
simples processo tecnológico numa arte que a nenhuma outra se assemelhava, a
única arte que a Humanidade de facto viu nascer, a música da luz, la musique de la lumière, na definição
insubstituível de Abel Gance. Nos jornais que logo em seguida divulgaram a
sessão histórica é que podemos avaliar o impacto do primeiro encontro do olhar
humano com a fixação do movimento, especialmente nessa resenha que ficaria
célebre:
“É
a própria vida, é o movimento vivo que se vê no cinematógrafo. A fotografia
deixou de fixar a imobilidade. Ela agora perpetua a imagem do movimento. Quando
esses aparelhos estiverem ao alcance do público, quando todos puderem
fotografar aqueles que lhes são caros não mais numa forma imóvel, mas em pleno
movimento, em plena ação e nos seus gestos familiares, a morte deixará de ser
absoluta.”
As
origens do poeta vinham da prestigiosa família Mello Moraes, que contava com
pelo menos dois nomes muito conhecidos, o historiador baiano Alexandre José de
Mello Moraes, um grande descobridor de documentos preciosos e valiosas fontes
primárias no Segundo Império, ainda que muito criticado pela sua falta de
método, e o seu filho, o médico, poeta, cronista, historiador e folclorista
Mello Moraes Filho. Mello Moraes Filho, autor de obra muito vasta, foi poeta
abolicionista tardio, - aliás, muito mau poeta -, admirável cronista do Rio de
Janeiro, com diversos títulos insubstituíveis, e folclorista notável, se bem
que nesse campo tenham-no acusado de ser ainda mais caótico e destituído de
método do que seu pai. Uma conhecida anedota afirma que, quando reunia material
para a sua obra Festas e tradições
populares do Brasil, um amigo lhe teria narrado uma dança folclórica, dele
desconhecida, existente no Estado de Alagoas, ao que ele, muito agradecido,
afirmou que a publicaria como sendo de Mato Grosso, pois de Alagoas ele já
tinha muita coisa, e quase nada daquele Estado. Verídica ou não, essa e outras
narrativas comprovam a existência de um espirituoso anedotário a respeito dos
ascendentes do poeta carioca.
Naquele
ano de 1913 o cinema assistia ao fim da carreira de seu primeiro criador, o genial
Georges Méliès, que no mês de maio lançara seu último filme, testamento de sua
intensa e irrepetível poesia, Le voyage
de la famille Bourrichon, abandonando para sempre a arte que ajudara a
criar. Na Suécia, Victor Sjöström filmava Ingeborg
Holm, um dos marcos iniciais da sua obra monumental. Do outro lado do
Atlântico David Wark Griffith - essa espécie de Bach do Cinema - filmava seu
primeiro longa-metragem, Judith de
Bethulia, ao qual logo se seguiria A
consciência vingadora, filme no qual o uso da fusão, tão característico do
futuro cinema alemão e nórdico, vinha se unir magistralmente ao paralelismo
conflitual que ele levaria ao apogeu, pouco depois, com O nascimento de uma nação, em 1915, e Intolerância, em 1916. Do lado de fora do berço do poeta, ou, como
no verso de Walt Whitman que gera a imagem recorrente que abre, pontua e
encerra Intolerância, “out of the cradle endlessly rocking”, a
curiosidade científica de 1895 se aproximava do seu incontornável destino de
grande arte.
Aos
três anos de idade, em 1916, a família Moraes se muda da Gávea para o bairro
bem mais central de Botafogo. Na entrada dos anos 20 dois factos vêm reforçar a
atração do futuro poeta pelo sagrado, pelo transcendente, que sempre o seguirá,
mas de maneira crescentemente interiorizada. Aos sete anos, ele é “batizado” na
Maçonaria, por desejo de seu avô materno Antônio Burlamaqui dos Santos Cruz,
cerimônia que lhe causa forte impressão. Aos onze anos, em 1924, matricula-se
no Colégio Santo Inácio, dos jesuítas, um dos mais tradicionais da cidade, e
ninguém passa por um colégio jesuíta impunemente.
Durante
toda essa década podemos dizer que sua vida corre em paralelo com o mais alto
momento da arte cinematográfica, aquele que se inicia na segunda metade dos
anos de 1910 com os monumentos da escola americana e sueca, para lentamente se
diluir nos primórdios da década de 1930, pouco depois do evento do cinema
falado. Uma floração de tal pujança só encontraria paralelo na dos anos de
1960, que, ainda assim, não a supera. De facto, relembrando de maneira muito
aleatória, em 1919 Stiller filma O
tesouro do Senhor Arno e Wiene realiza O
gabinete do Dr. Caligari. Em 1920 Sjöström realiza A carroça fantasma e Griffith Way
down East. No ano seguinte, 1921,
surge A Morte cansada, de Fritz Lang
e Órfãs na tempestade, de Griffith. Em
1922 Murnau realiza Nosferatu ,
Sjöström Prova de fogo, e Stroheim Foolish wives. Em 1923 Keaton lança Nossa hospitalidade, Abel Gance La roue, Stiller filma A saga de Gunnar Hedes, enquanto
Stroheim assiste à mutilação de sua obra-prima Greed. Em 1924 Murnau filma O
último dos homens, Lang as duas partes de Os Nibelungos, Stiller realiza A
saga de Gösta Berling e Eisenstein estreia com Greve. 1925 assiste ao surgimento do Encouraçado Potiônkim de Eisenstein, de Varieté, de Dupont, de A
corrida do ouro de Chaplin e de Go
West e Seven chances, de Buster
Keaton. 1926 dá ao mundo a impressionante seara em que encontramos A Mãe, de Pudovkin, Napoleão, de Abel Gance, Fausto,
de Murnau, A letra escarlate, de
Sjöström, O estudante de Praga, de
Galeen. 1927 assiste à aparição de O fim
de São Petersburgo, de Pudovkin, de College
e A General, de Keaton, de A aldeia do pecado, de Olga
Preobrajenskaia, de Aurora, de Murnau.
De 1928 é a também espantosa floração que engloba Outubro, de Eisenstein, Zvenigora, de Dovchenko, A queda da casa de Usher, de Epstein, O vento, de Sjöström, O herdeiro de Genghis Khan, de Pudovkin,
A paixão de Joana D’Arc, de Dreyer, The cameraman, de Keaton, A marcha nupcial, de Stroheim, O circo, de Chaplin, A turba, de King Vidor. 1929 é o ano de
surgimento de O velho e o novo, de
Eisenstein, de Arsenal, de Alexander
Dovchenko, de O homem da câmera, de Vertov, de A caixa de Pandora, de Pabst, de Hallelujah, a obra-prima já falada de King Vidor, de A nova Babilônia, de Kozintsev e Trauberg.
1930, último ano da década gloriosa, vê a aparição de A Terra, de Dovchenko, Sob os
telhados de Paris, de René Clair, L’Âge
d’Or, de Buñuel, assim como 1931 dá ao mundo M, o Vampiro de Düsseldorf, de Lang, Tabu de Murnau, Luzes da cidade,
de Chaplin, Vampyr, de Dreyer, Limite, de Mário Peixoto, no Brasil, e o
monumental e inacabado Que viva México!,
de Eisenstein.
Apesar
de longa e fastidiosa, tal lista está plena de omissões, mas consideramo-la
importante na análise da paixão de Vinicius de Moraes pelo cinema, pois todos
os filmes que acabamos de mencionar, entre os quais se encontram muitas das
obras máximas não só do cinema como da arte no século XX, surgiram no estreito
período que vai dos seis aos dezoito anos de idade do poeta. Impossível para
alguém de sua sensibilidade, exceto nos casos de ignorância do que ocorria na
Sétima Arte – coisa nada incomum, aliás, em literatos – ou de idiossincrasia
grave, ficar indiferente perante tudo isso.
É
justamente em 1930, término dos inigualáveis Anos 20, que Vinicius entra para a
Faculdade de Direito, em sua sede da Rua do Catete, sem qualquer vocação para
as leis. Lá, no entanto, conhece um grupo de intelectuais que terá grande
influência sobre ele, especialmente Otávio de Faria, o futuro romancista da Tragédia Burguesa – o mais longo roman fleuve da literatura brasileira –
emérito conhecedor de cinema. Cinco anos mais velho do que o poeta, de uma
família tão rica quanto culturalmente influente, católico de direita, Otávio de
Faria fazia parte de Chaplin Club, sendo mesmo seu membro mais importante ao
lado de Plínio Süssekind Rocha, Cláudio Mello e Souza e
Almir Castro. Se em política era conservador, em estética, e especialmente em
estética cinematográfica, era justamente o contrário. O nome Chaplin Club
representava não apenas uma homenagem ao autor de A corrida do ouro, como uma tomada de posição a seu favor no grande
debate estético da época, o futuro do cinema silencioso com a chegada do
falado, a partir de 1927, com O cantor de
jazz. Sabidamente Chaplin, em cuja arte a pantomima representava um papel
central, tanto quanto o seu evidente gênio dramático, posicionou-se
frontalmente contra os talkies,
enquanto os soviéticos, por exemplo, como exposto no manifesto assinado por Eisenstein,
Pudovkin e Alexandrov em 1928, assumiam a posição muito mais racional e frutífera
de condenar apenas o uso servilmente realista do som, que poderia levar boa
parte de uma grande arte a regredir a algo próximo ao teatro filmado.
É
o que, de certa maneira, percebera, sem esquecer a diferenças essenciais entre
as duas artes, o grande Aquilino Ribeiro, ao comentar o que chamava de “crise
do cinema”, em crônica publicada na Ilustração
de 1º de agosto de 1929:
“Na
América, para combater o crescente retraimento do público, criou-se o filme
sonoro. Ficou coisa tão sincrônica e perfeita como o teatro: mais do que cena,
possui o movimento sem limitação do espaço e a mutabilidade contínua do meio.”
Entre
1928 e 1930, ano de que tratamos, o Chaplin Club publicou o jornal O Fan, no qual Otávio de Faria publicou
uma série de artigos, do maior interesse, sobre todas essas questões. Outro
grande amigo seu, e espiritualmente ligado ao clube, era Mário Peixoto, que no
mesmo último ano de circulação da revista realizava, na pequena cidade fluminense
de Mangaratiba, o seu único filme, Limite,
obra-prima do cinema mudo brasileiro e universal. Por intermédio de Otávio de
Faria, seu colega de infância no Colégio Zaccaria, Mário Peixoto tornou-se também
amigo próximo de Vinicius. Infelizmente, a valiosa série de artigos de Otávio
de Faria em O Fan não foi até hoje
reunida em livro, havendo ele publicado, sobre o tema, apenas o curto ensaio
Significação do Far West, em 1952, e uma
admirável Pequena introdução à História
do Cinema, em 1964.
No
ano de 1933, estimulado por Otávio de Faria, Vinicius de Moraes publica seu
primeiro livro, O caminho para a
distância, pela Schmidt Editora, do também católico militante e poeta
Augusto Frederico Schmidt. Três anos depois, em 1936, o cinema entre
profissionalmente na sua vida, ao substituir o escritor Prudente de Moraes, neto,
no cargo de representante do Ministério da Educação e Saúde junto à Censura
Cinematográfica. Já então um poeta reconhecido, é durante a Guerra, em 1941,
que inicia a sua atuação como crítico de cinema, no jornal carioca A Manhã. No ano seguinte, ano em que o
Brasil declara guerra ao Eixo, após mais de dois mil brasileiros terem perdido
a vida em naufrágios de navios mercantes torpedeados por submarinos alemães que
faziam o bloqueio do Atlântico, Vinicius dará início a um tardio e fascinante
debate sobre a já velha questão de cinema silencioso e do cinema falado, uma
polêmica treze anos posterior à polêmica mundial sobre tal tema.
Era
o momento em que Orson Welles estava no Brasil, para lá enviado, tal como Walt
Disney, durante a vigência da célebre Política da Boa Vizinhança. Mundialmente
famoso pelo seu genial Cidadão Kane,
lançado no ano anterior, Welles se aproximaria muito de Vinicius de Moares,
enquanto tentava terminar seu documentário de longa metragem It’s all true, que inacabado ficaria, projeto
sabotado pelo estúdio – mais ou menos como acontecera com Que viva México! doze anos antes – não só pelos custos da produção
como pelas bebedeiras homéricas de Orson Welles, inclusive a mais lendária
entre elas, quando, após ter sido deixado, por telefone, pela sua bela namorada
mexicana Dolores del Río, atirou todos os móveis do seu quarto no hotel
Copacabana Palace pela janela, caindo todos eles na piscina. Outra figura
lendária do cinema mundial que se encontrava no Rio de Janeiro naquele momento,
exilada pela guerra, era Maria Falconetti, a imortal atriz de A paixão de Joana D’Arc, de Dreyer, que
morreria quatro anos depois, quase esquecida, em Buenos Aires.
O
artigo que abre a produção de Vinicius como crítico de cinema em A Manhã, em agosto de 1941, na verdade
uma mistura de manifesto com profissão-de-fé, de curiosa recusa a um outro cinema
que desde 1929 já dera perfeitas obras-primas com um culto chapliniano quase
religioso, é da maior importância para a compreensão da sua visão da Sétima
Arte e de todas as metamorfoses de sua produção posterior no mesmo campo:
CREDO
E ALARME
“Creio no Cinema, arte muda, filha da Imagem,
elemento original de poesia e plástica infinitas, célula simples de duração
efêmera e livremente multiplicável. Creio no Cinema, meio de expressão total em
seu poder transmissor e sua capacidade de emoção, possuidor de uma forma
própria que lhe é imanente e que, contendo todas as outras, nada lhes deve.
Creio no Cinema puro, branco e preto, linguagem universal de alto valor
sugestivo, rico na liberalidade e poder de evocação.
Creio
nesse Cinema. Em qualquer outro, o que transige com o som, a palavra, a cor,
não posso e não quero crer. Aos que me chamam de atrasado e intransigente direi
que prefiro o meu atraso e intransigência à frivolidade com que acomodam as
formas corruptas da vida e da arte. Aos que me acusarem de deslealdade para
comigo mesmo por aceitar a responsabilidade de uma crítica de Cinema como hoje
é feito - deturpado do seu melhor sentido pela mercantilização crescente -
direi que ainda me resta uma esperança cega de vê-lo volver à origem, à Imagem em
simples continuidade, ao jogo pródigo de sombras e claridades, ao ritmo
interior, à Poesia que o fecunda, à Música que o envolve, à Pintura que o
delimita, à Arquitetura que o constrói, à Palavra que o comenta, e que
milagrosamente se ausentam para deixar vivo o que de exato se chama Cinema.
Nesse
Cinema creio, só ele me satisfaz e só ele me parece conter em si de que
acrescentar ao conhecimento. E creio em Chaplin, seu criador máximo, que com
ele se confunde, identificação real do homem e do cineasta, grande exemplo de
sinceridade humana e lealdade artística.
Chaplin
é o Cinema: cenário, direção, ação, montagem. Não há dilemas.
*
Apresentando
esta seção, não queria deixar em nenhum leitor uma impressão de
incompatibilidade. Sou um apaixonado de Cinema. Só Deus sabe como gosto de uma boa
fita, o prazer que me traz “ver Cinema”, discutir, ponderar, escrever, até
fazer Cinema na Imaginação. Acho mesmo que só a Música traz-me uma tão grande
sensação de plenitude e gratidão. Não vou aqui me gabar - mas vi Luzes da cidade mais de vinte vezes.
Aliás, não seja por isso, porque Otávio de Faria viu mais de trinta.
Assim
é que irei dizer a verdade. Quisera também criar uma atmosfera propícia ao
Cinema, ajudar no que fosse possível e que por isso ninguém me levasse a mal.
Mesmo porque, se levar, tanto pior.”
No
mesmo periódico, e no mesmo mês de agosto de 1941, Vinicius noticia,
afastando-se totalmente do estilo místico e hierático do artigo anterior, o
surgimento de outro clube de cinema, agora em São Paulo, o que,
inarredavelmente, o conduz a lembrar-se do extinto Chaplin Club. Num estilo
cheio de humor, tão de sua índole, ele acaba por citar o nome de Paulo Emílio
Sales Gomes, que viria a ser um dos maiores críticos de cinema do Brasil, e que
anos mais tarde fundaria a filmoteca do Museu de Arte Moderna de São Paulo, além
de ter sido, quando vivia em França, um dos restauradores da obra-prima de Jean
Vigo, L’Atalante, de 1934, e autor de
sua biografia, até hoje a obra fundamental sobre o grande cineasta francês:
RECORDANDO
O CHAPLIN CLUB
“Conversando há pouco tempo com meu primo
Prudente de Moraes, neto, perguntei-lhe se não sentia qualquer coisa que
indicasse haver uma nova geração se formando para as letras do Brasil. Prudente
considerou o problema, se recolheu e acabou dizendo que não sentia nada. Como
eu também não estava muito certo, achei que era impressão minha e não pensei
mais no caso.
Mas
parece que há mesmo peixe na água e no justo lugar em que pesquei minha bota
velha. O crítico Álvaro Lins resolveu pescar de fundo e trouxe à tona a revista
Clima, que vem de aparecer em São
Paulo por um grupo notável de rapazes, gente séria, querendo trabalhar direito
e explicar as coisas bem explicadas.
Essa
revista tem uma seção de cinema aos cuidados do Sr. Paulo Emílío Sales Gomes.
Muito bem. Não vou entrar aqui em considerações sobre o extenso, metafísico
artigo com que o novo crítico paulista abre velas para sua longa viagem de ida.
O
que quero frisar, e isso em vermelho, é que o Sr. Paulo Emílio fundou, junto
com os Srs. Décio de Almeida Prado, Lourival Gomes Machado e Cícero Cristiano
de Souza, um Club de Cinema, o que no Brasil representa uma ousadia. O Club
encontrou na revista um ótimo abrigo para as suas especulações teóricas e a
aventura parece ir indo às maravilhas.
Tive,
aliás, oportunidade de assistir à primeira sessão do Club, em São Paulo, que
transcorreu num ambiente agradável, exibindo-se o famoso Gabinete do Dr. Caligari, de Robert Wiene, com cenário de Carl
Mayer.
Lembro-me
até haver fugido covardemente, esgueirando-me entre as cadeiras, ao ser
concitado a dar minha opinião sobre o velho clássico. Hoje posso confessá-lo
sem pejo: que Paulo Emílio me perdoe.
Quero
bater claro as minhas palmas à iniciativa dos rapazes de São Paulo, que é, sob
todos os aspectos, interessantíssima.
É
justamente do que precisamos: a formação de uma cultura cinematográfica, a fim
de que a arte não morra asfixiada pela mercantilização.
Mas
essas palmas não se livram de um calo de pessimismo. O Chaplin Club, de Otávio
de Faria, Plínio Süssekind, Almir Castro e outros, que foi, com o filme Limite, de Mário Peixoto, a única coisa
séria que tivemos em matéria de cinema no Brasil, se extinguiu por excesso de
complacência. Começaram a abrir as comportas, foi entrando gente, entrando
gente, acabou entrando cachorro.
Cachorro
latiu, correu, começou a atrapalhar, quiseram botar cachorro para fora, se
distraíram no pega-pega, quando viram estavam discutindo Rin-Tin-Tin,
perguntando por que é que cachorro entra na igreja e charadas tais que tiveram
que fechar a porta.
Não
digo que o Clube de Cinema de São Paulo se asfixie nos ambientes excessivamente
fechados ou nas alturas inacessíveis da arte do cinema. É preciso também
difundir. Mas o que é mais preciso de tudo é não cair na teoria, na vagueza, no
brilho, nas relações entre o cinema e o cosmos. Nada disso adianta. Adianta a
exibição de bons filmes bem explicados a uma assistência interessada que sai
dali e interessa outras três assistências.
De
qualquer modo acho a idéia de entusiasmar. É bom ver o velho Chaplin Club tendo
o seu primeiro filho. Aliás, por que não se faz a mesma coisa aqui no Rio, a
sério? Seria preciso pensar nisso. Já uma vez aventurei a idéia ao ministro
Capanema. Mas... fazer com grade na porta. Borboleta só, não basta.”
Ainda
no mesmo jornal e no mesmo mês de agosto de 1941, Vinicius reassume, ao falar
de King Vidor, sua persona de
defensor temerário e implacável do cinema como grande arte:
CINEMA
“Houve tempo em que King Vidor queria dizer
tudo para nós, os intransigentes em cinema. A notícia de um filme seu
representava uma certeza. Criava-se um processo de preparação, um estado de
espírito, uma disponibilidade para a obra que se ia assistir. Discutia-se
tempos antes, comparava-se o grande cineasta aos poucos que se poderiam medir
com ele. Vê-lo era uma real alegria, uma sensação de desafogo. Aparecia
produção nova sua, como aparecia romance novo de Lawrence ou poema novo do
Manuel Bandeira. Vinham à tona coisas do passado. Falava-se de Big parade como num amigo próximo. Hoje,
esse filme nos deixa tristes com a evocação de seus mortos. John Gilbert, Renée
Adorée, o pobre Karl Dane, que nele teve a sua melhor oportunidade, e o seu
notável realizador.
Era
o tempo da Turba, de Aleluia, depois de No turbilhão da metrópole. Mesmo os cochilos, como O campeão, Ave do Paraíso, eram perdoados ao King Vidor de O pão nosso de cada dia, o King Vidor
que podia errar, mas era incapaz de traição dentro do falado.
Morto,
dizia eu. O homem que assassinou O
inimigo, em exibição no Metro, não é o mesmo que criou A turba. Recuso-me a aceitar qualquer semelhança entre ambos: o da Turba era um cineasta completo, havia
atingido uma altitude cinematográfica irrespirável mesmo para homens como um
Dupont ou um Murnau.
De
modo que não há dúvida: King Vidor morreu. Quem pactuou com a Metro Goldwyn
Mayer, essa fábrica de fazer palhaços, quem autorizou a sua assinatura em tal
pachouchada, quem se permitiu concessões dessa espécie, morreu como artista. O
artista não pode, não tem direito de trair, mesmo que o sucesso, a fortuna, a
fama seduzam o homem.
King
Vidor tinha sucesso, tinha fortuna, tinha nome. No entanto, teve o Inimigo X.
Ora,
isso não é possível. Logo, King Vidor morreu. Não percam tempo em ir ver essa
comédia ridícula e insultuosa. Não foi King Vidor quem a fez, foi a firma
Goldwyn Mayer.
Big
business, you know!...
Cotação?”
Mas
é preciso, nas muitas idas e vindas cronológicas às quais não podemos escapar,
já que o próprio Vinicius de Moraes crítico de cinema delas não se desenreda - ao
sabor da memória, da esperança, da decepção, da admiração profunda – voltarmos ao
decisivo ano de 1942, aquele em que Orson Welles e Falconetti freqüentavam a
Cinelândia, o mais famoso logradouro do Centro do Rio de Janeiro, onde, em cada
edifício, justificando seu nome, havia um cinema, aquele mesmo ano em que o
Brasil entrava na II Guerra Mundial. A sete de maio daquele ano Vinicius
publicava, sempre em A Manhã, este
artigo magnífico e definidor, na verdade apenas a primeira parte de um artigo,
em polêmica a respeito do cinema falado com o físico italiano Giuseppe
Occhialini, então um dos pioneiros da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas da Universidade de São Paulo:
CARTA
AO FÍSICO OCCHIALINI
“A
nossa conversa de outro dia, meu caro Occhialini, deixou-me, além da tensão
intelectual provocada por suas colocações cinematográficas, numa grande
angústia poética. É que você, homem da física (e eu diria melhor: da
metafísica, no sentido menos filosófico da palavra - se é que possível sobrepor
assim duas ordens do mesmo conhecimento), vê as coisas num mundo do qual eu
ando afastado, ai de mim, há muito tempo. Esse mundo “das origens”, onde um
dia, num poema, via a música como a essência de todas as coisas, como a
sabedoria por excelência - espécie de vibração do caos primitivo ante a idéia
da encarnação da matéria divina -, esse mundo, diria eu, que é o “seu mundo”,
que eu quisera fosse o meu mundo, causa-me um terror pânico. Nunca poderei me
esquecer do nosso Marcelo Damy de Sousa Santos - nós dois num quarto em
Londres, no dia justo em que o destino da guerra tomava forma em Munique, dia
de extremo nervosismo e perplexidade para a Inglaterra - falando-me sobre raios
cósmicos, eu deitado na cama, ele passeando exaltado pelo quarto, num
arrebatamento lírico que me pôs em face mesmo do mistério original da Criação.
No céu, ouvia-se o ruído dos aviões, invisíveis, guardando Londres contra a
possibilidade de um bombardeio alemão. Mas isso tudo esqueceu-se, tornou-se o
ruído confuso das máquinas da vida trabalhando no vazio originário as formas
primeiras da harmonia, da ordem, do amor, da morte, da ressurreição. Vi, juro
que vi, com o cinema de meus olhos, o panorama alucinante da Criação
permanente; ouvi o bombardeio dos raios cósmicos sobre a superfície da Terra, milagre
de desenho animado anti-Fantasia,
pois que vivia sem cor, sem som, sem voz, com o traço puro, mas onde as
estrelas podiam muito bem ser galinhas brancas pondo os seus ovos luminosos
sobre os campos do mundo.
Desde
esse dia o Marcelo passou a ser uma superstição para mim. Tenho por ele, por
esse menino tocado de gênio, uma verdadeira veneração. Nem sei se ele sabe
disso; aliás, não importa. Mas para o que eu quero lhe explicar, é muito
importante. O cinema é uma arte (digamos arte, mesmo a contragosto) essencial,
nunca duvide disso. Ela existe à base de toda a realidade da imagem, imagem
aqui considerada no seu sentido mais amplo. O cinema são os olhos do primeiro
homem em êxtase contínuo, em descoberta contínua de todas as imagens, da imagem
pura, que é a sua própria continuidade. Não sei se você me entende como eu
quisera que você me entendesse. Pena é que não possa lhe dizer mais longamente,
mais metodicamente, mais cientificamente, até chegar a um ponto de onde
brotasse a luz. Paciência. Provisoriamente, dir-lhe-ei o seguinte: para mim, o
cinema, como a música ou a poesia, é um “estado” mais que uma arte. A nossa
sede de formas deu-lhe um nome e criou-lhe uma técnica própria. Mas realmente
ele existe em tudo, em tudo o que é sucessão e ritmo de imagens. O pensamento é
essencialmente cinemático, sobretudo quando não “visualiza”. Eu desconfio do
pensamento ou da emoção que “visualiza”. Desconfio de Debussy, desconfio de
Wagner, desconfio de tudo que excita mais do que “se abandona”. Chaplin não
visualiza, veja você bem. Nem Bach, nem Shakespeare, nem Rilke. É preciso não
ir buscar a essência do cinema na pantomima apenas. Não: isso é uma síntese,
mas não é toda a síntese. O burro que vai molemente pela rua com os olhos
dirigidos pelas viseiras, realiza um écran
muito mais perfeito que o de todas as câmeras do mundo, as mais astuciosas, as
mais simples.
Meu
caro Occhialini, tudo isso está me saindo do lápis, diretamente para você.
Muita gente vai me achar pedante, quem sabe você mesmo. Mas acredite que veio
num fluxo só, nenhuma das formas que procurei para dizer-lhe essa coisa tão
simples me agrada mais que a última, a do burro. Há nela o movimento, a
sucessão, a espontaneidade, a luz, a visão, enfim. Animal introspectivo, o
burro é o cineasta por excelência. Sans
blague. Você entende, não?”
Dissemos
acima “apenas a primeira parte de um artigo”, pois no dia seguinte, oito de
maio, era publicada a sua segunda e última parte, fim de uma polêmica em que
Vinicius se aproximava de uma realidade que cresceria de forma vertiginosa nas
décadas seguintes, o surgimento de categorias espúrias de apreciação estética
pela vigência diária, cotidiana, da aceleração tecnológica. Talvez o momento
mais trágico dessa realidade, na qual vivemos hoje mergulhados até a cabeça,
tenha sido de facto a passagem do cinema mudo para o sonoro no final da década
de 1920:
SEGUNDA
CARTA AO FÍSICO OCCHIALINI, CASO ELE AINDA NÃO TENHA PARTIDO, OU A OUTRA MENTE,
A QUEM QUER QUE SINTA COMO ELE
“A
sua colocação do cinema sonoro, Occhialini, não é que seja impura; quem
conhecer você sabe, se tiver uma parcela de intuição, que você é um homem puro,
fundamentalmente puro em suas colocações. Eu a acho, se você quiser (e você,
grande físico, perdoe-me a impostura...), pouco... científica. Você aceita o
sonoro em cinema como uma facilidade histórica, digamos assim, como uma fase no
desenvolvimento normal de uma árvore em crescimento. Você acha o silêncio uma
verdade que se usou, que deu o que tinha para dar, que cresceu até onde tinha
que crescer e ali murchou, sendo preciso podar ou enxertar novos galhos,
naquele momento da árvore vencida.
Eu
compreendo o seu ponto de vista e o aceito, na certeza esquiliana de que “tudo
o que existe é justo e injusto, e nos dois casos igualmente justificável”.
Somente o amoralismo do conceito, que é muito mais meu que seu, serve-me como
uma arma contra você próprio, que vive, artisticamente, mais no seu verdadeiro
(e eu digo verdadeiro) espírito. Eu não acredito nessa verdade com V grande,
certo de que somos todos, homens, outras tantas verdades igualmente
respeitáveis e sem solução catalisadora. Acho que você também não acredita
muito nela, não? O que eu quero dizer, no entanto, é que o sonoro peca, em
relação à imagem, por desajustamento ideal, isto é, que trata-se de um sistema
dentado e não de bilhas, que trata-se de uma composição horizontal e não
vertical. Falta-lhe, fundamentalmente, criação e equilíbrio. Talvez haja até
uma vontade de perfeição no sonoro, maior, muito maior que no mudo, ou no
silêncio para ser mais exato. Realmente os estágios que você me mostrou tão
lucidamente, os estágios dimensionais que vão do desenho primitivo no grafito
até à escultura, aumentando a dificuldade, e conseqüentemente o progresso (não
gosto da palavra, mas não encontro outra) da criação, a sua capacidade de se
renovar - são perfeitos de lógica e de emoção. São uma verdade. Mas você se
esquece de uma outra verdade: é de que a imagem tem intimamente som, sem ser
preciso um microfone para captá-lo. A tempestade final em Tempestade sobre a Ásia de Pudovkin; ou a cena do marinheiro
arrebentando o prato, em cólera (acho que é um prato... mas tanto faz), no Couraçado Potemkin de Eisenstein, tem
mais som que um verdadeiro tufão nas ilhas, ou que a esposa atrabiliária
quebrando toda uma cristaleira por chegar-lhe o marido atrasado para o jantar.
O som é uma experiência, brilhante, não há dúvida, num filme como Aleluia, como Cidadão Kane, como Tempos
modernos, esporadicamente. Mas é uma ênfase, uma superfetação. O que é
grande, na evolução da árvore, é que o seu crescimento não subentende nenhuma
direção, nenhum caminho. A beleza da árvore é um milagre simples; sua harmonia
e equilíbrio, uma expressão divina de naturalidade. O desenho não contém a
idéia de pintura, nem a pintura a idéia de relevo, nem o relevo a idéia de
escultura. São acontecimentos naturais de uma procura, que, essa sim, vive à
base de toda a grandeza artística. Mas a imagem contém o som, como a luz, como
o movimento. Aliás, o movimento compreende tudo isso. Não há movimento nas
trevas, nem som sem movimento. Portanto, meu caro, o que é a beleza na geração
das artes, da música até a escultura, que é, como se diz, a música morta (eu sempre
impliquei com essa idéia...), não é a verdade no cinema, criando o cinema
sonoro, o cinema falado, o cinema em cores, o cinema em relevo, o cinema
olfativo, o cinema-escultura, ou não importa que futuras tentativas no campo da
arte. É pura experimentação e pode ter um grande valor como tal. Não neguemos à
arte o sucesso de si mesma, e a necessidade de inovar. Estou longe de crer que
o cinema seja a última arte neste mundo em que vivemos, ou a estratégia. Não.
Mas o que eu digo é que do cinema não pode sair cinema sonoro. Poderá sair
outra arte, não sei qual, mas nunca um outro cinema sonoro: um estágio em
progressão. Chamemo-lo: um departamento do cinema em experiência. Não creio que
possa nunca dar nada como Luzes da cidade
ou como o Couraçado Potemkin. Adeus,
meu caro.”
Não poderíamos deixar de reproduzir aqui, ainda que reconhecendo
a vasta quantidade de citações, e isso por seu enorme valor histórico, o
maravilhoso artigo de Vinicius sobre Maria Falconetti, publicado a 9 de junho
de 1942:
ENTREVISTA
COM MME.
FALCONETTI, A GRANDE INTÉRPRETE DE JOANA
D’ARC, DO CINEASTA CARL DREYER, BEM COMO O SEU PRONUNCIAMENTO NO DEBATE
SOBRE CINEMA SILENCIOSO E CINEMA FALADO
“Quando
Augusto Frederico Schmidt me disse que Mme.
Falconetti se achava no Rio, eu cheguei a tatear por uma cadeira. Porque, no
fundo, era como se eu tivesse ouvido qualquer coisa assim: “Você sabe quem está
hospedada no Copacabana? Joana d’Arc em pessoa...”
De
facto, para mim não há nenhuma diferença essencial. Para mim Joana d’Arc tem o
rosto de Falconetti, a cabeça de Falconetti, os olhos de Falconetti. Li o livro
de Delteil sem imagem definida da santa, pois só mais tarde veria o filme de
Dreyer. Mas já quando li a plaquette
de Bernanos, emprestei à jovem Joana a imagem que Dreyer lhe deu. E na
Inglaterra, assistindo à peça de Shaw fiquei inteiramente perturbado com o
desequilíbrio que me causou ver Joana encarnada em outra mulher que não
Falconetti, tão inferior a Falconetti.
Senti
imediatamente que era preciso vê-la, falar com ela. Trasanteontem, passando
pelo Amarelinho, dei com Roberto Alvim Correia ingerindo filosoficamente esse
mau chá que se serve nos cafés do Rio. Parei para duas palavras. E a conversa,
girando em torno de Falconetti, fiquei por perto de uma hora. O nosso Correia
tivera a sorte de vê-la interpretando Phèdre,
em Paris, e disse-me a respeito, com grande admiração. Mas eu nada dei a
Falconetti por causa disso. A imagem de Joana d’Arc me perseguia, naqueles
monumentais fundos brancos. Nunca haveria outra.
Esperando-a,
no salão do Copacabana, senti-me extraordinariamente confuso. “Daqui a um
instante”, pensava eu olhando o elevador, “aquela porta vai se abrir, e Joana
d’Arc vai surgir dali, as mãos nas soleiras, a indumentária simples de combate,
um cinturão rústico, umas botas de cano curto ajustando as calças coladas, a
cabeça quase raspada, os olhos dolorosos, o rosto transportado…” E os grandes
detalhes silenciosos, lentos, do filme de Dreyer foram voltando, em sua
plástica primitiva, como num poderoso mural.
Não
foi assim, é claro. Falconetti surgiu, bem evidente, mas num elegante e simples
vestido preto. Vinha acompanhada de seu filho. Reconheci-a imediatamente e de
longe a cumprimentei. Ela dirigiu-se sorrindo para a minha mesa, inteiramente à
vontade, vagamente surpresa com a minha mocidade, que as pessoas em geral vêem
maior do que realmente é. Estou beirando os trinta. O facto é que disse-lhe
essas duas ou três coisas essenciais que despertam numa mulher uma impressão
muito melhor da inteligência de um homem que não importa que títulos literários
ou científicos. Falei-lhe do meu reconhecimento pela sua interpretação; de sua
beleza inesquecível; e de como essa beleza se transportara integral para seu
filho, aquele menino de 11 anos que ali estava.
Não
se passava meia hora e estávamos num táxi rumando à última conferência que
Orson Welles dava, na cidade, sobre teatro. Falconetti mostrara-se interessada
em ouvir o que Orson Welles dizia sobre uma arte que lhe é tão familiar. Avisei-lhe
que provavelmente só pegaríamos o finzinho, pois a hora já ia pelas sete e
meia. Mas ela quis arriscar assim mesmo. E a boa sorte fê-la assistir, pelo que
me disseram, à melhor parte da palestra: a parte interpretativa. Orson falava
de Shakespeare, recitando-lhe trechos. Depois disputou-se com duas ou três
pessoas da assistência, defendendo a primazia da linha do poeta em teatro, num
excelente confronto com Racine. Falconetti aplaudiu. Terminado o entretien apresentei o Cidadão Kane a
Joana d’Arc, com grande surpresa daquele, que se mostrou por um instante
emocionado. Foi, posso lhes garantir, um bom momento para mim. Falconetti
sentiu a rápida e tensa mudança de expressão no rosto de Orson Welles quando
lhe disse ao ouvido: “Chega aqui, é favor; quero apresentar a você a Joana d’Arc
de Dreyer, a Falconetti...” Vi-a sinceramente desvanecida.
Fiquei
para jantar com ela, quem não ficaria? E foi ao jantar que ela me contou sobre
o filme, de como um dia lhe haviam batido à porta e entrara esse homem que se
sentara a seu lado, conversara meia hora com ela e lhe dissera que nunca faria
a sua Joana d’Arc com outra mulher, embora tivesse compromissos para um teste
com a própria Pitöeff. E de como realmente a ocasião chegara, e Dreyer lhe
falara do que ia ser o seu filme: o momento supremo de uma criatura, o quadro
fundamental de uma vida de mulher. Não amava especialmente a Joana d’Arc.
Queria, sim, revelar uma mulher. Para isso precisava de toda a sua atenção, de
toda a sua dedicação, de sua renúncia absoluta. Fê-la chorar como experiência.
E avisou-lhe que ela precisaria viver chorando, que não veria ninguém, que só
trataria com ele, que precisaria da sua obediência absoluta...
“Sofri
muito”, disse Mme. Falconetti. “Foram
cinco meses de tortura. Às vezes brigávamos. Perguntava-lhe: ‘Mas M. Dreyer, se o senhor me deixasse um
pouco de liberdade para a ação, eu poderia dar alguma coisa de mim mesma...’
“Ele
recusava-se formalmente. Obrigava-me à maior passividade. Filmava coberto por
anteparos, para que ninguém me visse e nada me distraísse a atenção do que
fazia. Acabada a cena, recolhia-me a uma casa de campo a que só ele tinha
ingresso. Falava-me constantemente, incutindo-me a idéia da obra que queria
realizar. Era-lhe uma idéia fixa.
“Não
foi à toa que enlouqueceu. Está internado. No dia em que acedi a que me
raspassem a cabeça, coisa que ele me pedia sempre, foi de uma extraordinária
doçura comigo. Mas nunca o vi tão áspero como quando, desobedecendo a uma ordem
expressa sua, dei uma fugida a ver a Joana
d’Arc de M. Shaw. Ele soube e
correu atrás de mim. Censurou-me amargamente de querer destruir-lhe o trabalho.
‘Agora’, disse-me, ‘vai sair a Joana d'Arc de Shaw, e não a minha!’.
“Nunca
mais quis fazer outro filme”, suspirou ela. “Tive propostas para Hollywood, mas
não as aceitei. Acabei o trabalho num estado de nervos inimaginável. Ao ver o
filme pela primeira vez, detestei-o. Não havia nada meu. Era tudo de M. Dreyer. Cinema é isso, é o diretor.
Engraçado”, sorriu-se, “a grande crítica que se fez ao filme foi a sua falta de
desenvolvimento, de progressão. Eu própria achei assim, vendo aquelas figuras
em luz e sombra, paradas, lentas. Só mais tarde compreendi que não podia ser de
outro modo, que tratava-se de uma visão, de um instante em cinema.”
Falamos
sobre cinema. Contei-lhe o desenvolvimento do debate que se trava nesta coluna
e pedi-lhe um pronunciamento. Falconetti sorriu:
“Dizer
que eu...”
Mas
seu alheamento durou pouco. Recobrou-se:
“Sou
pelo silêncio. Meu pronunciamento, não o creio de muito valor. Sou uma atriz de
teatro. Mas no que posso julgar, estou de acordo com o ponto de vista. O
silêncio é o mais fundamental. Não é possível imaginar uma Joana d’Arc sonora ou falada, nem fazê-la melhor. Estou certa que M. Dreyer diria o mesmo no seu debate.
Sabe de uma coisa, tudo o que é décor
é pouco importante. O artista que usa disso como meio de expressão, esse não
vai longe, já transigiu.”
Mme.
Falconetti disse mais. Disse coisas muito importantes sobre cinema e teatro,
colocando-se sempre dentro de um recato perfeito no julgamento dessas artes.
Batera palmas ao ouvir Orson Welles pronunciar que “no actor can beat a good line” (nenhum ator pode com uma boa
linha). Isso me bastava. Ao me despedir dela apertei-lhe afetuosamente as mãos
que Dreyer sujara de esterco para filmar. Seu rosto, que nunca conheceu
maquilagem em cinema, traduzia um agradecimento. Tive vontade de dizer-lhe como
era belo e eterno na minha lembrança seu rosto de Joana d’Arc…
No fim do mês seguinte, a 30 de julho de 1942, A Manhã publicava o primeiro artigo de
Vinicius sobre a exibição de Limite a
Orson Welles. Esse e os outros artigos sobre o filme de Mário Peixoto são de
importância fundamental no seu conjunto de escritos sobre cinema, na medida em
que Limite representou, para os
cinéfilos de sua geração, especialmente aqueles ligados ao Chaplin Club - já no momento do fim do falado, visto ter sido
lançado em 1931 - a realização de um sonho impossível, de uma utopia, o filme –
obra sempre caríssima para ser realizada – surgido como um simples desejo de
expressão estética, espiritual, o filme sem indústria, sem financiamento, sem
estúdio, o filme acima de qualquer narrativa literária ou teatral, conduzindo uma narrativa, sem qualquer
dúvida, mas através da imagem, do ritmo, da luz. Limite, de facto, muito pouco conhecido fora do Brasil, é uma das
obras-primas do cinema mundial e quase como o canto de cisne do cinema silencioso.
Entre 1929 e 1931 já haviam surgido umas tantas obras-primas do cinema falado,
mais do que isso, obras-primas onde o som exercia papel fundamental na trama,
como Hallelujah de King Vidor, Sob os telhados de Paris, de René Clair,
ou M, o Vampiro de Düsseldorf, de
Fritz Lang, especialmente, em tal sentido da necessidade dramática do som, este
último. Algumas obras-primas mudas continuavam, no entanto, a aparecer, como Douro, faina fluvial, de Manoel de
Oliveira, do mesmo ano de Limite, ou A felicidade, de Medvedkin, em 1934,
para nem nos lembrarmos de filmes com som onde a palavra era nula ou
relativamente secundária, de Luzes da
cidade, de Chaplin, até O Homem de
Aran, o inigualável poema geográfico de Flaherty, de 1934.
A verdade é que Limite,
filme que a nenhum outro se parece na história do cinema - apesar das
influências incontornáveis do cinema russo, alemão e da Avant-Garde francesa - pôde ser lentamente realizado, durante todo
o ano de 1930, por um jovem de vinte anos de idade, oriundo de família muito
rica, cuja situação social permitiu a eclosão de uma sublime obra de cinema
puro que, em outras condições menos privilegiadas, nunca teria existido. Talvez
isso explique, entre outros fatores, o facto de o seu autor nunca ter realizado
outro filme, até sua morte, em 1992, aos 84 anos de idade, ainda que tenha
deixado roteiros magistrais. Mas vamos à crônica:
EXIBIÇÃO
DO FILME BRASILEIRO LIMITE DE MÁRIO
PEIXOTO
“A reunião efetuada anteontem não pôde,
infelizmente, ser noticiada a tempo, porquanto - obra da minha obstinada
teimosia em querer que Orson Welles visse Limite
antes de voltar para os EUA - aconteceu como um milagre. Antes, tudo houvera
contra. Domingo mesmo, quando andei amolando Deus e todo mundo em cata de uma
cabine, sabendo que Orson Welles tinha a tarde livre (que o diga esse paciente
e caro Assis Figueiredo), não houve jeito. Não consegui encontrar operador. Mas
não desisti. Orson Welles, esse, desistiu de há muito: “There’s something about this film…”, disse-me ele, elevando a voz
naquela palavra, com um tom desanimado.
No
entanto arranquei-lhe a promessa de me dar a noite de terça-feira, quando não
fosse, para uma sessão com debate. Só para ele ver como era. E anteontem, após
articulações com o Serviço de Divulgação, e com Mário Peixoto, a coisa
conseguiu se arranjar. Em seu coquetel do Glória anunciei a Welles que veria Limite. Ele arregalou os olhos:
-
Gosh! I hardly believe it.
Perdoem-me
os não avisados, mas não pude telefonar senão para alguns amigos. É que eu
estava doente, de cama, e foi um sacrifício - espontâneo, é claro - levantar-me
e tomar todas essas providências. Enfim, às nove horas da noite a salinha do
Serviço de Divulgação enchia-se com umas trinta pessoas, entre as quais Maria
Rosa Oliver, a escritora argentina, diretora de Sur, que se acha entre nós, e que é uma das mulheres mais inteligentes
que já encontrei; Mme. Falconetti, a
inesquecível Joana d’Arc de Dreyer; Frederick Fuller, o grande cantor inglês, e
sua senhora; Fernando la Guarda, o conselheiro da embaixada do México; Carlos
Guinle e senhora; Otto Maria Carpeaux; o cinegrafista húngaro Fantos; e outros
amigos cujos nomes já têm ilustrado essa coluna, como fiéis freqüentadores das
minhas pequenas sessões.
Disse
duas palavras sobre Limite, dado em
homenagem especial a Orson Welles, que por essas horas deve estar na Argentina,
acentuando dois ou três detalhes históricos da sua realização, com a
colaboração de Brutus Pedreira, que teve a bondade de se encarregar do roteiro
musical do filme, e Edgar Brasil, o notável cameraman
de Limite, e a exibição transcorreu perfeita, graças à boa vontade do professor
Maciel Pinheiro, que conseguiu arranjar dois projetores, a fim de que a continuidade
do filme não sofresse nenhuma solução.
Posso
assegurar que, uma vez as luzes acesas, senti a grande impressão que o filme
tinha feito em todos. Orson Welles deu-me particularmente sua opinião, que foi
a melhor. E pude ver-lhe a sinceridade do que dizia nos olhos. Carpeaux
soprou-me ao ouvido: “Mas é poesia pura...” Maria Rosa Oliver não me escondeu
sua admiração pela fotografia magnífica e pela grande pureza cinematográfica da
sucessão. Frederick Fuller estava assombrado. Tinha visto um dos maiores filmes
da história do cinema. É preciso dizer mais para acentuar ao grande público a
necessidade de se desculpar... publicamente do seu descaso em relação a Limite indo vê-lo como convém na grande
exibição que breve vamos promover no Metro Passeio?
Não
creio. Tenho certeza que o público brasileiro pode, se quiser, entender Limite. É uma questão de boa vontade e
movimento para a arte. Arte silenciosa, é bom frisar...”
No
dia seguinte, 31 de julho de 1942, era publicada a crônica que é como a
continuação da que acabamos de ler:
LIMITE,
DE MÁRIO PEIXOTO, COM FOTOGRAFIA DE EDGAR BRASIL
Ninguém, dos que foram à pequena reunião de
terça-feira na salinha do Serviço de Divulgação da Prefeitura, desconfiava da
real força cinematográfica do filme de Mário Peixoto, que, no entanto, já conta
com um passado de 12 anos. Doze anos, na jovem arte do cinema, é um passado.
Ninguém.
Vi chegarem as pessoas bem humoradas, mas sem concentração. Não havia zunzum.
Orson Welles estava às gargalhadas com seu amigo, o conselheiro La Guarda.
Cinco ou seis das pessoas presentes já conheciam o filme, e estas moitavam. Limite é sempre uma surpresa. Já o tinha
visto duas vezes e, no entanto, para mim, foi como uma novidade.
O
ambiente da sala esteve liso como uma superfície de lago. Desde as primeiras
imagens, uma vez começada a projeção, coloquei-me ao lado de Orson Welles e o
assisti ver o filme durante uns 15 minutos. Depois, levantei-me e andei
passeando pela sala, sentando junto de um e de outro, na curiosidade de
apreciar as reações de pessoas que, sei, vêem cinema diversamente. E senti
formar-se lentamente, como ao mergulhar de uma pedra, essa onda sucessiva de
círculos concêntricos, alargando o interesse atmosférico do espetáculo. Depois
eu próprio me perdi. Limite é um
anfiguri que toca os limites da intuição perfeita. Há constantemente a incursão
do cinema na sucessão. O ritmo ora é largo, em grandes planejamentos, ora
vertiginoso, sem a menor dispersão, com um mínimo de veículo na imagem. A
imagem é a grande força presente, em ritmo interior e de sucessão, criando
problemas permanentes na imaginação do espectador. Nunca se viu um filme tão
carregado (e eu emprego o termo como ele é usado em eletricidade) de meaning, de expressão, de coisas para
dizer, sem dizer nada, sem chegar nunca a revelar, deixando sempre tudo no Limite da inteligência com a sensibilidade,
da loucura com a lógica, da poesia com a coisa em si.
Essa,
a grande qualidade de Limite como
cinema, como superconhecimento. O filme não dá a menor ponte ao espectador.
Arrasta-o à aventura da sua compreensão. E que aventura fascinante! Tive o
cuidado de convidar dois ou três leigos completos em matéria de cinema, dois ou
três legítimos representantes do grande público. Sua reação foi a melhor, Não
“entenderam” tudo, me disseram, mas ficaram fundamente perturbados com a
capacidade virtual da imagem de falar por si mesma. Garanto como pode-se
preparar qualquer público para gostar de Limite.
É uma questão de persuasão crítica. Há em todo o mundo de que gostar de boa
arte, a questão é mostrá-la como tal.”
Após
essas longas, mas importantes citações, em que se misturam Orson Welles e
Vinicius de Moraes, Falconetti e Mário Peixoto, gostaríamos de abrir um pequeno
parêntese, dedicado ao estranho destino dos objetos, assunto que sempre nos
fascinou. Certo dia, num alfarrabista carioca, encontramos um exemplar da
primeira edição do The film sense, de
Eisenstein, com a seguinte dedicatória:
To
Mario,
past
glory and future hope of the brazilian cinema,
Frederick
24 março 44
Tratava-se,
como podemos ver, de um exemplar pertencera ao autor de Limite, ganho provavelmente - na véspera de seu aniversário - do
cantor inglês Frederick Fuller, que Vinicius enumera entre os presentes à
famosa projeção do filme para Orson Welles narrada há pouco. Em outra ocasião,
e noutro alfarrabista, adquirimos um exemplar da Panoramique du Cinéma, de Léon Moussinac, de 1929, livro que aliás
já possuíamos. Mas nesse exemplar, à margem de uma página em papel couché em que se viam duas fotos de
Falconetti no Joana D’Arc de Dreyer,
líamos a seguinte dedicatória, em letra das mais originais:
Souvenir d’une actrice française à deux brèsiliens que
aiment son pays, Maria et Oswaldo Süssekind Rocha.
Falconetti
Tratava-se
do irmão de um dos líderes de Chaplin Club, Plínio Süssekind Rocha, que lideraria
igualmente o movimento pela restauração do filme na década de 1970, ele também
membro importante do clube.
Quatro
anos após a sessão histórica de que falamos, em 1946, num dos momentos mais
importantes de sua biografia, Vinicius de Moraes parte para Los Angeles, onde
assumiria o cargo de vice-cônsul do Brasil. Ali, na capital da indústria
cinematográfica mundial, estudaria cinema, no ano seguinte, com seu amigo Orson
Welles e com Greeg Toland, e fundaria, com Alex Viany, cineasta e crítico brasileiro,
a revista Film. Dessa estada em Los
Angeles, que duraria cinco anos, nasceriam alguns poemas característicos, como
“História passional, Hollywood, Califórnia”, e, muito especialmente, embora sem
relação direta com o local em que foram escritos, os três sonetos em homenagem
a Eisenstein, no momento de sua morte, com apenas 50 anos de idade. Como os
sonetos são datados de Los Angeles, 12 de fevereiro de 1948, ou seja, no dia
seguinte à morte do maior gênio da arte cinematográfica em Moscou, não temos dúvida
de que eles surgiram no calor da notícia tão lamentável quanto inesperada:
TRÍPTICO
NA MORTE DE SERGEI MIKAHILOVITCH EISENSTEIN
I
Camarada
Eisenstein, muito obrigado
Pelos
dilemas, e pela montagem
De
Canal de Ferghana, irrealizado
E
outras afirmações. Tu foste a imagem
Em
movimento. Agora, unificado
À
tua própria imagem, muito mais
De
ti, sobre o futuro projetado
Nos
hás de restituir. Boa viagem
Camarada,
através dos grandes gelos
Imensuráveis.
Nunca vi mais belos
Céus
que esses sob que caminhas, só
E
infatigável, a despertar o assombro
Dos
horizontes com tua câmara ao ombro...
Spasibo,
tovarishch. Khorosho.
II
Pelas
auroras imobilizadas
No
instante anterior; pelos gerais
Milagres
da matéria; pela paz
Da
matéria; pelas transfiguradas
Faces
da História; pelo conteúdo
Da
História e em nome de seus grandes idos
Pela
correspondência dos sentidos
Pela
vida a pulsar dentro de tudo
Pelas
nuvens errantes; pelos montes
Pelos
inatingíveis horizontes
Pelos
sons; pelas cores; pela voz
Humana;
pelo Velho e pelo Novo
Pelo
misterioso amor do povo
Spasibo,
tovarishch, Khorosho.
III
O
cinema é infinito - não se mede.
Não
tem passado nem futuro. Cada
Imagem
só existe interligada
À
que a antecedeu e à que a sucede.
O
cinema é a presciente antevisão
Na
sucessão de imagens. O cinema
É
o que não se vê, é o que não é
Mas
resulta: a indizível dimensão.
Cinema
é Odessa, imóvel na manhã
À
espera do massacre; é Nevski; é Ivan
O Terrível; és tu, mestre!
maior
Entre
os maiores, grande destinado...
Muito
bem, Eisenstein. Muito obrigado.
Spasibo,
tovarishch. Khorosho.
Parece-nos,
ao analisarmos a maneira como o poeta se refere a Eisenstein nesse tríptico,
que o amadurecimento dos anos fizeram Vinicius perceber, a partir de sua
idolatria chapliniana original, até que ponto Chaplin representava um caso sui generis dentro da história do
cinema, na medida em que Chaplin, como ator e criador de um personagem, era ao
mesmo tempo mais e menos do que o puro cinema, do mesmo modo que, apenas como exemplo, Wagner é antes de tudo Wagner, para o bem e para o mal, não se podendo
julgar a sua obra pelos mesmos parâmetros com que se julgaria a música “apenas”
música, ou a ópera “apenas” ópera.
Em 1952, dois anos após a sua volta de Los Angeles para o
Brasil, Vinicius, acompanhado de dois primos, visitaria algumas das cidades
históricas de Minas Gerais, filmando-as e fotografando-as, tendo em vista a
realização de um filme sobre o Aleijadinho, o maior artista colonial brasileiro,
que lhe fora encomendado por Alberto Cavalcanti, que, por sua vez, retornara ao
Brasil em 1949, para fundar em São Paulo a Companhia Cinematográfica Vera Cruz.
Tal projeto não sairia do papel.
Ainda nesse mesmo ano mesmo Vinicius é nomeado delegado
junto ao Festival de Cinema de Punta del Este, sobre o qual escreve crônicas
para o jornal carioca Última Hora. Pouco
depois viaja à Europa, com o objetivo de estudar de perto os festivais de Cannes,
Berlim, Veneza e Locarno, para a prevista realização do Festival de Cinema de
São Paulo, em 1954, ano do quarto centenário da metrópole. Curiosamente, sua
peça Orfeu da Conceição, publicada
naquele mesmo ano na revista paulistana Anhembi,
seria premiada no concurso de teatro do IV Centenário da Cidade de São Paulo.
Vale a pena ressaltar que o conjunto de escritos cinematográficos de Vinicius
de Moraes não se resume inteiramente ao que podemos chamar “grande cinema”, nem
à teoria do mesmo, mas muitas vezes desce, apesar do desinteresse do autor pelo
star sistem, à pequena história, aos
mexericos sobre a vida dos astros e estrelas, inarredável paixão do grande
público, e isso com humor saborosíssimo.
Em
1956, Orfeu da Conceição, uma
brilhante transposição do mito de Orfeu e Eurídice para o ambiente das favelas
cariocas, é montada pela primeira vez no Teatro Municipal do Rio de Janeiro,
com canções musicadas por Antônio Carlos Jobim e cenários de Oscar Niemeyer. Três
anos mais tarde, adaptada ao cinema por Marcel Camus, a peça se transformaria
no filme Orfeu Negro, ganhador da
Palma de Ouro de 1959. Além do filme apenas projetado sobre o Aleijadinho, e o
grande triunfo de Orfeu Negro, na feitura
do qual Vinicius participou de perto, vale a pena lembrar que dois filmes
viriam a inspirar-se muito indiretamente em obras suas, Garota de Ipanema, de Leon Hirszman, nome importante do Cinema
Novo, em 1967, a partir da famosíssima canção, e Marília e Marina, do diretor Luiz Fernando Gulart, em 1976, baseado
no seu importante poema “Balada das duas mocinhas de Botafogo”, que, com o nome
original, ainda serviria ainda de inspiração a um curta-metragem de Fernando
Valle, João Caetano Feyer, no ano de 2006.
Exatamente
nessa época, a atividade artística de Vinicius de Moraes se voltaria cada vez
mais em direção à canção, em detrimento, não podemos negar isso, de sua poesia
– por mais que suas letras para canções sejam admiráveis, letras não são poemas
– ao mesmo tempo em que o cinema - suas últimas críticas e crônicas conhecidas
são do ano de 1953 – também se tornava uma paixão cada vez mais distante em sua
vida concreta. Se o corpus de seus textos
sobre a Sétima Arte, até hoje em grande parte inéditos, é de uma extensão e
riqueza impressionantes - incluindo alguns longos textos sem data que
mereceriam figurar em qualquer antologia da crítica cinematográfica mundial - é
impossível não lamentarmos o seu afastamento da crítica militante justamente
antes da chegada da década de 1960, a mais rica do cinema mundial depois da
década de 1920. Se os seus textos críticos ainda atingem, nessa última fase,
parte primordial da obra de um Rossellini, um De Sica ou um Kurosawa, não chega,
no entanto, às obras maiores de Ingmar Bergman e Fellinni, assim como nada
alcança dos nomes fundamentais de Resnais, Godard, Pasolini, Truffaut, bem
como, em relação a essa década que também marcou o apogeu do cinema brasileiro,
a presença genial de Glauber Rocha, ao lado de nomes como os de Nelson Pereira
dos Santos, Anselmo Duarte, Roberto Santos, Carlos Diegues, Roberto Farias, Rogério Sganzerla e muitos outros.
Ao
morrer, em sua casa no bairro da Gávea - o mesmo em que nascera, aos 66 anos -
enquanto tomava um banho de banheira, no dia 9 de julho de 1980, o Brasil
perdia em Vinicius de Moraes um dos seus filhos mais amados e mais múltiplos, poeta,
cronista, dramaturgo, compositor, e, ao lado de tudo isso, grande e entusiástico
amante da arte cinematográfica, esse mágico fluxo de fotogramas que tão
perfeitamente simula a nossa própria trajetória no tempo.
Alexei Bueno
11-10-2013
Comovedora a "aventura de vida ou vidas" do nosso poetinha.
ResponderExcluirFico sem saber onde começa a magia: no próprio focalizado, na "lanterna mágica" ou neste texto?