AUGUSTO DOS ANJOS: ORIGENS DE UMA POÉTICA
A poesia de Augusto dos Anjos nos impressiona, até
hoje, pela extrema especificidade do indivíduo que a compôs, pelo caráter de
independência extrema, quase de geração espontânea, com que ela irrompeu no
panorama da literatura brasileira. De fato, essa independência do indivíduo
pensante, tão ou mais espantosa do que a do poeta que ele era, justifica
imediatamente o título do Eu,
provando de resto a aguda autoconsciência de seu autor.
Por mais que haja influências do
inconsciente na gênese desses poemas, como em geral sempre há quando se trata
da grande poesia, é inegável que, uma vez realizada, cada obra de Augusto dos
Anjos era friamente apreendida pela sua cortante inteligência, que não deixaria
de perceber, entre características muito menos óbvias, a estranheza profunda
que causaria a seus contemporâneos, fato mesmo gerador de dois significativos
poemas, “O poeta do hediondo” e “Noli me
gangere”, cruéis e exacerbados auto-retratos, menos de como ele deveria se
sentir do que de como ele sabia que o sentiriam, e quase uma justificativa
prévia de quem se sabia responsável por ultrapassar as fronteiras temáticas do
recomendável e do aceito.
Em muitas coisas, no entanto, o poeta
de “Os Doentes” é visivelmente um homem de sua época e de seu meio, como não
poderia deixar de ser, e características suas, do pensador e do poeta, são
encontradas em alguns de seus contemporâneos, como facilmente se demonstra. Uma
das bases primordiais de sua visão do mundo, e, por conseguinte, de sua obra, o
seu propalado cientificismo, caracteriza bem o indivíduo educado nos últimos
anos do século XIX, o século por excelência do ufanismo científico, da euforia
do conhecimento e da ilusão do progresso ilimitado, criador de uma relativa onipotência
do homem sobre a matéria, crenças cruelmente frustradas pelo advento bárbaro da
Primeira Guerra Mundial, no ano mesmo da morte do nosso poeta.
Entre diversas generalizações
filosóficas possíveis em voga naquele instante, desde o positivismo até o
marxismo, Augusto dos Anjos, de maneira bastante sintomática, adotou como
crença pessoal os sistemas que mais dariam ensejo a uma visão predominantemente
mística e totalizadora do universo, ou seja, o Evolucionismo, vindo de Darwin
mas sobretudo filtrado por Spencer, e, mais decisivamente, o Monismo, o grande
sistema unificador da fenomenologia universal fervorosamente propagandeado por
seu criador, Ernest Haeckel, racionalização materialista carregada de grande
possibilidade de expansão religiosa, e construída aliás sobre diversas
premissas biológicas falsas ou erroneamente interpretadas.
O que nos parece inegável no caso de
Augusto dos Anjos é a sinceridade primordial de sua adesão intelectual e mesmo
emocional aos postulados dessa visão de mundo, residindo aí, inclusive, a sua
capacidade espantosa de escrever alta poesia a partir dos mesmos, fato que
elimina qualquer suspeita de um temperamento de poseur ou de pedante na sua exibição de pensamento científico. Se
na questão do léxico, sobretudo talvez em sua prosa, nos parece que o poeta
sucumbiu a uma irresistível compulsão a épater
le bourgeois com sua esmagadora cultura, parece-nos que na sua poesia o uso
do mesmo vocabulário, mitigado aliás na última fase, é fruto de um fluxo de
sensibilidade absolutamente autêntico, não só dos conceitos inerentes aos
vocábulos, mas também do poder encantatório estranho e musical de seu arcabouço
fonético. A presença de semelhante uso até em sua correspondência pessoal,
escrita sem nenhuma intenção de fazer literatura, nos prova, aliás, o quão
natural era para ele tal processo, apesar do tom estranhíssimo que adquire no
âmago de uma epistolografia familiar.
Parte da incompreensão que se criou em
torno desse uso de vocabulário científico, mais especialmente nomes de espécies
e termos filosóficos, nasce, na verdade, de uma certa preguiça mental do leitor
em relação a vocábulos que lhe causam estranheza e cuja utilização lhe parece
despropositada e inútil. A incorporação, no entanto, desses seres ínfimos,
desses microorganismos que nos são tão estranhos quanto os próprios nomes que
os designam, está perfeitamente no plano do poeta, porta-voz da essência de
todos os seres, e não apenas do homem. A originalidade dessa posição é marcada
pela originalidade sonora do nome das espécies. Assim, quando em “Budismo
moderno” o poeta se refere às “diatomáceas da lagoa”, cuja cápsula criptógama é
bruscamente desfeita pelo contato involuntário de uma mão humana na superfície
da água, ele cria uma originalíssima metáfora de sua própria fragilidade, que
um golpe qualquer de uma força superior pode destruir, ao mesmo tempo que se
identifica, na solidariedade de condenados à morte, a essas vidas mínimas que
também o são, o mesmo que ocorre em “Alucinação à beira-mar”, onde os
“malacopterígios subraquianos / que um castigo de espécie emudeceu” lhe
“pareciam também corpos de vítimas / condenadas à Morte, assim como eu!” Como
podemos ver, nenhum exibicionismo gratuito, nenhuma proximidade do
bestialógico, mas apenas um uso radicalíssimo das infindáveis possibilidades do
léxico, de resto estatisticamente muito pequeno em relação ao total de seu
vocabulário para justificar a fama imerecida de delírio vocabular que muitas
vezes lhe imputaram.
O que é importante ressaltar é a
maneira como o Monismo evolucionista se transformou nas mãos de Augusto dos
Anjos em uma espécie de sistema místico totalizador, que lhe serviu de base tão
legítima para o exercício estético quanto diversos sistemas religiosos serviram
para poetas místicos de todos os tempos. A sensibilidade exacerbada para a
percepção da energia potencial oculta em toda a matéria (“O lamento das
coisas”, “As montanhas”, “Numa forja”, “O pântano”, “A floresta”, etc.) é uma
de suas características mais marcantes. Em contrapartida, porém, a esse mecanismo
quase otimista do caráter evolutivo do universo, sobrevive em seu espírito um
forte elemento de negação da vida enquanto criadora do sofrimento, um budismo
de origem claramente schopenhaueriana, como encontramos também em Antero de
Quental ou Raimundo Correia (“A um gérmen”, o “Soneto” ao filho natimorto,
etc.), que se inclui igualmente entre as influências gerais do pensamento
finissecular. Dessa maneira, o que verdadeiramente podemos detectar na visão do
mundo do poeta, é um movimento pendular entre a adesão a um postulado
filosófico e a descrença parcial ou total na sua eficácia, bem como na de todos
os outros sistemas, quando confrontados com a simples e implacável presença da
maior das evidências da vida e do universo: a morte, destruidora paciente e
impiedosa de todos os esforços e devaneios humanos.
Esse caráter pessimista da poesia de
Augusto dos Anjos quanto ao pretenso poder da ciência contra o mistério do
universo, essa falta de crença na eficácia de todo o esforço humano, é uma das
suas características que mais o aproximam de nós, exilados há muito do ingênuo
ufanismo cientificista do século passado. Tal como o Fernando Pessoa que
concluía “Não procures nem creias. Tudo é oculto” e afirmava:
Cega, a ciência a inútil
gleba lavra.
(“Natal”)
o
poeta paraibano, convicto igualmente da impotência da cognição, escrevia:
Em vão, com a bronca enxada
árdega, sondas
A estéril terra...
(“As
cismas do Destino”)
Revelando como, muito mais do que poeta da morte, como popularmente
o cognominaram, Augusto dos Anjos é o poeta do fracasso do enfrentamento do
mistério, da impotência perante o incognoscível, conclusão igual à que
encontraria qualquer místico; e a morte comparece, antes de tudo, para esse
grande radical, como o último e maior de todos os fracassos, como a mais
absoluta e definitiva forma de impotência. Poema central dessa tendência, entre
inúmeros outros e fragmentos de outros, é o soneto “O mar, a escada e o homem”,
bem como o “Solilóquio de um visionário”.
Como exemplo da primeira tendência em poetas seus
contemporâneos, ou seja, a percepção panteísta ou potencial do universo,
podemos citar o belo soneto do poeta mineiro Augusto de Lima (1860-1934), poema
no qual, com um tratamento mais clássico, encontramos um tema muito caro ao
nosso poeta:
NOSTALGIA PANTEÍSTA
Um dia, interrogando o níveo
seio
De uma concha voltada contra
o ouvido,
Um longínquo rumor, como um
gemido,
Ouvi plangente e de saudades
cheio.
Esse rumor tristíssimo,
escutei-o:
É a música das ondas, é o
bramido,
Que ela guarda por tempo
indefinido,
Das solidões marinhas de onde
veio.
Homem, concha exilada, igual
lamento
Em ti mesmo ouvirás, se
ouvido atento
Aos recessos do espírito
volveres.
É de saudade, esse lamento
humano,
De uma vida anterior, pátrio
oceano
Da unidade concêntrica dos
seres.
(Símbolos, 1892)
ou
o poema seguinte, de Hermes Fontes (1888-1930), um dos literatos que melhor
compreenderam o Eu quando de seu
aparecimento:
A PRIMEIRA PEDRA
― Corpo que se encontrou abandonado de alma,
Corpo que não se pôde à ação
do ar decompor ―
Uma pedra é uma vaga
imóvel... É uma calma
Recordação do mar de que foi
leito a estrada,
Uma vaga do mar dos Tempos,
retardada,
Que por aí ficou sem
sentidos, parada,
Adormecida por um íntimo
torpor.
É a Impassibilidade
esculturada. Dorme.
Secou-lhe o sangue, e não
consegue apodrecer.
Vive? É possível. Morre? É
provável. Conforme
A Vida e a Morte... A pedra é
um ponto de partida.
É o princípio da Morte, é o
princípio da Vida...
É um gesto contrariado, é uma
força contida,
É o Ser que adormeceu em
caminho do Ser...
(Gênese,
1913)
Prova, afinal, da índole essencialmente mística do soi disant materialismo de Augusto dos
Anjos encontramos no belíssimo soneto “Ultima
visio”, no final de “Os Doentes” ou em arroubadas e impressionantes
estrofes como esta:
Quando
eu for misturar-me com as violetas,
Minha
lira, maior que a Bíblia e a Fedra,
Reviverá,
dando emoção à pedra,
Na
acústica de todos os planetas!
ou como essa outra (que
julgamos muito mais indicada para ser escrita no seu túmulo do que o último
terceto de “O poeta do hediondo”, que de fato lá está):
As minhas roupas, quero até
rompê-las!
Quero, arrancado das prisões
carnais,
Viver na luz dos astros
imortais,
Abraçado com todas as
estrelas!
Esse sentimento de onipotência, esse
êxtase do absoluto que é parte inseparável do espírito de Augusto dos Anjos, é
que deu origem à contradição trágica que
é a base mesma de toda a sua poética. Materialista, acreditando racionalmente
em um evolucionismo panteísta onde só a generalidade das formas universais
progredia e sobrevivia, o poeta era obrigado a conscientemente se tomar por um
efêmero, aleatório e ínfimo acidente genético na grande cadeia das espécies,
condenado sem apelação à desaparição total enquanto especificidade individual.
O que lhe era no entanto convicção racional, não lhe podia ser vivência
subjetiva. Ciente, portanto, da morte implacável, e crendo nela com a fé com que
cria no seu bem construído sistema, e jamais indiferente a esse ou a qualquer
outro fato, como ser perscrutador das essências, tudo aliado à uma
sensibilidade desmedida, dotada de uma capacidade de representação
requintadíssima, podemos sentir com uma nitidez quase solidária o paroxismo de
angústia que tal inadequação entre o raciocínio e a sensibilidade deve ter
causado ao poeta da “Eterna mágoa”.
Foto de formatura de Augusto dos Anjos, com dedicatória para seu amigo Leonardo Smith, editor do Nonevar, no qual o poeta muito colaborou. (Coleção do autor)
Se essa vivência trágica é, ao nosso
ver, o fundamento mesmo da obra de Augusto dos Anjos, outra característica sua
serve para dar à sua dor a ressonância universal e mesmo cósmica que a
caracteriza. Tomando nas próprias costas a missão de ser a consciência e a voz
da Dor universal, desde as formas inorgânicas até ao homem e mesmo ao cosmos, o
poeta se torna o possuidor empático e exasperado do tesouro de misérias
sociais, fisiológicas e genéticas que a realidade brasileira lhe entrega como
espetáculo cotidiano e terrível. Daí tem início o desfile expressionista de
bêbados, idiotas, tuberculosos, palermas, leprosos, prostitutas, estropiados,
abortos, malucos e muitos outros que invadem com grande freqüência partes das
mais características de sua poesia. O mesmo fenômeno pode ser explicitamente
encontrado em trechos de Antônio Nobre, como na “Lusitânia no Bairro Latino” ou
no Cesário Verde da segunda parte de “Em petiz”. De fato, sentimos muita coisa
da temática e do ritmo de Augusto dos Anjos em estrofes como estas:
Outros pedincham pelas cinco
chagas;
E no poial, tirando as
ligaduras,
Mostram as pernas pútridas,
maduras,
Com que se arrastam pelas
azinhagas!
Vícios, sezões, epidemias,
furtos
Decerto, fermentavam entre os
lixos;
Que podridão cobria aqueles
bichos!
E que luar nos teus fatinhos
curtos!
Da mesma maneira o sistema narrativo do
passeio noturno, de uso tão geral na obra do poeta do Eu, é o mesmo utilizado por Cesário Verde no “Sentimento de um
ocidental”. De fato, todos os poetas mencionados, como o Antônio Nobre que
exclama: “Qu’é dos pintores do meu país estranho?/ Onde estão eles que não vêm
pintar?” referindo-se ao cromatismo das dermatoses e ao pitoresco dos
desgraçados da rua, possuem essa compreensão pós-baudelairiana das
possibilidades estéticas do horrível, que atingiu a poesia ocidental depois de
“Une charogne”. Sua origem no entanto,
mesmo que sempre marginal ao classicismo, é velha como a arte, pelo menos tão
ancestral quanto o pé de Filoctetes, explodindo periodicamente no memento mori da arte cristã ou no
mórbido do maneirismo e do barroco, em jacentes cobertos de vermes ou nas
moralidades claro-escuras de um Valdés Leal.
De Poe até Baudelaire, depois através
de todos os “decadentes”, de um Richepin da Chanson
des gueux ou de um Rollinat de Les
névroses, essa audácia da análise social dos naturalistas, alcança a poesia
brasileira por meio dos nossos próprios “decadentistas”, mais uma prova da
filiação simbolista do expressionismo de Augusto dos Anjos. Basta, para a
compreensão disto, o exame de um poema como “Ébrios e cegos” de Cruz e Sousa, o
último de Faróis, poesia sob todos os
aspectos extraordinária, onde, de maneira pessoalíssima, o Poeta Negro atinge
um expressionismo torturado, trágico, quase surrealista.
A união entre essa liberdade de tratar
da maneira mais crua o espetáculo da miséria humana com a adesão a um sistema
científico totalizador e ateu, sem haver no realizador de tal conjunção
qualquer possibilidade de apaziguamento subjetivo dentro dela, eis, na nossa
opinião, a origem primordial da poética do Eu.
Formalmente, essa essência foi vazada
numa sonoridade rígida e tensa, com recursos extremos na busca da
expressividade sonora ―
uso primordialmente simbolista ― tudo aprisionado no entanto em uma métrica
ortodoxamente parnasiana. Augusto dos Anjos é, de fato, o rei da sinérese
implacável na poesia brasileira, mais do que qualquer parnasiano (o que lhe
chega mais perto nesse aspecto talvez seja o pouco lembrado Luís Carlos), sendo
também, mais do que qualquer simbolista, o rei da aliteração. Raramente
encontramos um hiato sobrevivente à sua metrificação impiedosa.
De um virtuosismo no verso praticamente
insuperável, embora de variedade bastante limitada, a roupagem normal da poesia
de Augusto dos Anjos é o seu sonoríssimo e persistente decassílabo, onde as
metáforas mais espantosas e exatas se amontoam quase claustrofobicamente,
dando-nos sempre a impressão de uma força agrilhoada, de um infinito preso
dentro de uma camisa de força, na iminência esperada de explodir, o que é no
mínimo um registro perfeito para conter a sua temática de ânsia insanável do
absoluto e desespero concreto. Dentro desse ritmo implacável, inseparável dele,
é que o leitor encontra o fulcro talvez de sua realização estética, uma
exatidão vocabular sem paralelo, iluminadora, acima de todo o uso padronizado
da linguagem poética, quase como se o autor escrevesse numa língua original,
com uma percepção virgem do sentido das palavras, do mesmo modo que com um
olhar virgem do espetáculo do mundo, fenomenologicamente puro e esmiuçador. De
fato, o poeta que cria quase a cada verso expressões de inesquecível exatidão,
uma “espionagem fatídica dos astros”, um “corpo ubiquitário do Criador”, ou
essa espantosa “noumenalidade do NÃO
SER”, entre centenas de outras, teria que forçosamente realizar um livro da
força do Eu, cuja uniformidade de
grande poesia supera, no total, mesmo a dos maiores livros da poesia
brasileira, um Espumas flutuantes, um
Últimos sonetos, um Últimos cantos, obras máximas onde,
mesmo assim, a voltagem às vezes desce um pouco, comparados com a unidade de
força do Eu, só encontrada em
pouquíssimos livros, em
um Clepsidra , em um Mensagem. Materialmente , para a compreensão
técnica dessa forma eficaz e original em que se expressou o poeta de “A árvore
da serra”, entre diversos estudos a ela dedicados retornamos sempre ao ensaio
clássico de Manuel Cavalcanti Proença., O
artesanato em Augusto dos Anjos.
Essa limpeza de visão que mencionamos,
essa capacidade de ver, livre de qualquer roupagem eufemística, o real ― esse estado ofuscante que a maioria dos homens,
julgando-se seus plenos possuidores, jamais conseguiu nem rapidamente entrever ― é a origem, uma vez vazada na mais plena eficácia
verbal, do poder emocional da poesia do Eu.
Vejamos, por exemplo, o grande poema escrito para o seu filho morto aos seis
meses de gestação:
Soneto
Ao meu primeiro filho nascido morto com 7 meses incompletos.
2 de fevereiro de 1911.
Agregado infeliz de sangue e
cal,
Fruto rubro de carne
agonizante,
Filho da grande força
fecundante
De minha brônzea trama
neuronial,
Que poder embriológico fatal
Destruiu, com a sinergia de
um gigante,
Em tua morfogênese de infante
A
minha morfogênese ancestral?!
Porção de minha plásmica
substância,
Em que lugar irás passar a
infância,
Tragicamente anônimo, a
feder?!
Ah! Possas tu dormir, feto
esquecido,
Panteisticamente dissolvido
Na noumenalidade do NÃO SER!
A não ser para os irremediavelmente refratários ao
reconhecimento do lado relativo, frágil, trágico, e no entanto tão diariamente
presente, da existência humana, estamos perante uma obra de arte de extrema
exatidão, tanto na percepção do real
quanto no sentimento dela conseqüente. Estamos, ao contrário de todo o vago, de
todo o hermético, perante uma iluminação quase excessiva, uma clareza superior
à da apreensão normal da consciência, uma poesia direta e iluminadora. O soneto
se inicia, cruamente, por duas definições em seqüência, cada uma um verso, onde
cada palavra, diríamos mesmo cada sílaba, cumpre uma insubstituível função
conceitual e emocional. Depois de um perfeito desenvolvimento, chegamos então
aos tercetos, onde a pungência trágica e a eficácia vocabular atingem os ápices
da grande poesia, desde a definição exata e quase tátil do 9º verso até a
pergunta terrível dos dois seguintes. “Em que lugar irás passar a infância, /
Tragicamente anônimo, a feder?!” Que ironia maior que essa palavra “infância”,
usada num sentido puramente cronológico, para quem nunca a terá? E que coisa
mais dolorida que esse anonimato, sem retorno, de quem nunca recebeu um nome? E
então, para horrorizar os defensores desse conceito esteticamente indefinível
chamado “bom gosto”, o verbo “feder”. Mas que fará esse “agregado infeliz de
sangue e cal” se não isso? Se há aí algo de mau gosto, é a própria vida, e
extrair disso a grande obra arte é a única superação que ela nos permite.
Finalmente, no último terceto, depois do sono augurado a esse “feto esquecido”
(e que dor nesse profético “esquecido”, como se bem soubesse o poeta que perdas
muito maiores também implacavelmente o serão), o insuperável 13º verso:
“Panteisticamente dissolvido”, composto de apenas duas palavras, que, com seu comprimento
excessivo, reproduzem sonoramente a idéia que carregam. E por fim, verso que já
mencionamos: “Na noumenalidade do NÃO
SER!”. Nem todos os leitores, infelizmente, terão a possibilidade de apreender
esse verso, que Medeiros e Albuquerque julgou um disparate filosófico, em toda
a sua profundidade de conceito e sobretudo de emoção.
Essa qualidade de adequação vocabular,
característica da grande poesia em todos os tempos, percorre a totalidade da
obra madura do poeta de “O lamento das coisas”. Vejamos, por exemplo, nesta
poesia citada este verso: “A sucessividade dos segundos”. Há verso mais
“sucessivo” do que esse, com a sua infindável cadeia de sibilantes? “Ouço, em
sons subterrâneos, do orbe oriundos”. Haverá verso mais “fundo” do que esse? Em
tudo, nesses momentos de perfeita realização, a marca desse fenômeno da
genialidade, específico do mundo da arte, por ser não um grau superior de uma
qualidade intelectual qualquer, mas um estado absolutamente pessoal,
involuntário, irrepetível, intransferível e inadquirível de colaboração do
inconsciente com o consciente, um milagre que se confunde com um homem e não se
repete, chame-se ele Gil Vicente, Camões, Gonçalves Dias, Castro Alves, Cesário
Verde, Cruz e Sousa, Pessanha, Antônio Nobre, Alphonsus de Guimaraens, Augusto
dos Anjos Pessoa, Sá-Carneiro, Manuel Bandeira, Cecília, Drummond, etc. Daí a
importância secundária, humanamente falando, das correntes genealógicas e
fecundantes na historiografia de uma literatura.
Quanto às influências dessas correntes,
recebidas pelo poeta na sua formação definitiva, e que ficaram visíveis através
de sua obra, parecem-nos afastados os autores de outras línguas, visto não
estarmos tratando nem de temática nem da genealogia da mesma, da qual falamos
acima, mas de uma concreta presença na sua maneira característica.
Nem Rollinat, do qual já o aproximaram
não poucas vezes, nem Poe ou os que o seguiram merecem, exclusivamente por
estarem na aludida família de sensibilidade, ser citados nesse caso. A mesma
coisa não ocorre com Cruz e Sousa e com Cesário Verde. A influência do poeta
dos Broquéis, sobretudo em seus
sonetos derradeiros, sobre o modo de estruturá-los que encontramos em Augusto
dos Anjos, especialmente na primeira fase, é inegável, parecendo-nos que na
origem de ambos há algo de Antero de Quental, de resto o iniciador da retomada
pós-arcádica do soneto como grande forma na literatura de nossa língua.
Vejamos, por exemplo, a construção
desses dois famosos sonetos, o sublime “Sorriso interior” de Cruz e Sousa, seu
último poema, escrito três dias antes da morte, e o “Eterna mágoa” de Augusto
dos Anjos, com um título que lembra muito de perto os do Poeta Negro:
SORRISO INTERIOR
O ser que é ser e que jamais vacila
Nas guerras imortais entra
sem susto,
Leva consigo esse brasão
augusto
Do grande amor, da nobre fé
tranqüila.
Os abismos carnais da triste
argila
Ele os vence sem mágoas e sem
custo...
Fica sereno, num sorriso
justo,
Enquanto tudo em derredor
oscila,
Ondas interiores de grandeza
Dão-lhe essa glória em frente
à Natureza,
Esse esplendor, todo esse
largo eflúvio.
O ser que é ser transforma
tudo em flores...
E para ironizar as próprias
dores
Canta por entre as águas do
Dilúvio.
Agora
o soneto do Eu:
ETERNA MÁGOA
O homem por sobre quem caiu a praga
Da tristeza do mundo, o homem
que é triste,
Para todos os séculos existe
E nunca mais o seu pesar se
apaga!
Não crê em nada, pois nada há
que traga
Consolo à mágoa a que só ele
assiste.
Quer resistir, e quanto mais
resiste
Mais se lhe aumenta e se lhe
afunda a chaga.
Sabe que sofre, mas o que não
sabe
É que essa mágoa infinda
assim não cabe
Na sua vida, é que essa mágoa
infinda
Transpõe a vida do seu corpo
inerme;
E quando esse homem se
transforma em verme
É essa mágoa que o acompanha
ainda!
Como podemos ver, a mesma estrutura baseada em um
desenvolvimento conceitual que atravessa todo o corpo do soneto, até
resolver-se no último verso, o mesmo andamento severo, classicamente solene,
apesar da diferença essencial entre o pensamento luminoso do primeiro e a
conclusão sombria do segundo.
Mais decisiva, porém, por agir não
sobre uma fase de uma forma fixa, mas exatamente sobre a quadra de decassílabos
que se tornou o instrumento por excelência da expressão do poeta, nos parece
ser a quadra de decassílabos de Cesário Verde, sem esquecer a sua incorporação
de um léxico cotidiano, material e prosaico, sendo inclusive o vocabulário
científico também encontrado no poeta português. Cronologicamente, no caso do
nosso autor, o contato com Cesário Verde deve ter acontecido a partir da
segunda edição do Livro, a de 1901,
visto a primeira, de 1887 e com duzentos exemplares, ter sido muito pouco
divulgada. É provável, no entanto, que algo de sua poesia tenha chegado ao
Brasil antes da edição popularizadora (o que é fato a ser estudado), como
podemos rastrear em poetas como B. Lopes, pois é difícil conceber a existência
de um poema como “Inverno”, incluído no Brasões,
de 1895, sem a leitura da obra de Cesário Verde. A seleção, dentre os versos do
poeta lisboeta, de algumas de suas estrofes mais cheias das características
lexicais que mencionamos, mas sobretudo mais sonoramente aproximadas da maneira
de Augusto dos Anjos, causará a qualquer leitor experimentado do poeta do Eu uma impressão de evidente
familiaridade, às vezes mesmo de quase identidade sonora. Vejamos alguns
exemplos, entre muito possíveis:
Era a desolação que inda nos
mina
(Porque o fastio é bem pior
que a fome)
Que a meu pai deu a curva que
o consome,
E a minha mãe cabelos de
platina.
Era a clorose, esse tremendo
mal,
Que desertou e que tornou
funesta
A nossa branca habitação em
festa,
Reverberando a luz
meridional.
................................................................
“Moléstia negra” nem
“charbon” não era,
Como um archote incendiando
as parras!
Tão pouco as bastas e
invisíveis garras,
De enorme legião do filoxera!
.................................................................
Nos vinhatórios via fulgurar,
Com tanta cal que torna as
vistas cegas,
Os paralelogramos das adegas,
Que têm lá dentro as dornas e
o lagar!
...............................................................
A impressão doutros tempos,
sempre viva,
Dá estremeções no meu passado
morto,
E ainda viajo, muita vez,
absorto,
Pelas várzeas da minha
retentiva.
Então recordo a paz familiar,
Todo um painel pacífico de
enganos!
E a distância fatal de uns
poucos anos
É uma lente convexa, de
aumentar.
(“Nós”, Livro de Cesário Verde)
Como vemos, até o uso característico dos vocábulos
esdrúxulos, como no segundo verso da última quadra, ou o uso de expressões das
ciências naturais, como na terceira, sem contar as metáforas audaciosas e
sobretudo a cadência do verso, mostram a grande proximidade entre o
extraordinário poeta português e o admirável paraibano, parecendo-nos, apesar
da inegável influência do primeiro sobre o segundo, um caso de sensibilidades
afins, fraternalmente próximas, onde a primazia cronológica é mais um acidente
ocasional do que uma ordem implacável, e onde talvez uma simples inversão de
prioridade provocasse uma inversão de influência, ao menos se houvesse canais
de comunicação eficazes para tanto.
Da mesma maneira, é justamente com
Cesário Verde em Portugal e com Augusto dos Anjos no Brasil que a incorporação
de um vocabulário violentamente apoético pelos cânones clássicos, de um léxico
da realidade concreta, reles, diária, mesquinha, abre as portas para uma
invasão da arte no campo da realidade em seu sentido mais concreto. Se há algo
de realmente específico, original, na poesia mundial do último século e meio, é
essa conquista do território do banal, essa capacidade nova e extraordinária de
extrair o sublime das áreas mais reles da realidade. Como disse Baudelaire: “J’ai pétri de la boue et j’en ai fait de
l’or.” E isso fizeram na nossa língua os poetas em questão. Muito mais
importante que o vocabulário científico, muito mais característico e decisivo
para a história de nossa poesia, é o uso feito pelo poeta paraibano dessas
palavras, reflexos da realidade em si, que dificilmente encontraríamos em um poema
de Alberto de Oliveira, de Martim Fontes ou de Olavo Bilac: fogão, bacia,
ferrolho, escarradeira, cuspo, querosene, colher, lixo, mulambo, entre
muitíssimas outras. Sem ser de maneira nenhuma um realista, consciente de que a
simples reprodução do real não alcança o âmago essencial da realidade sem se
valer para isso dos artifícios da arte, o poeta do Eu lança mão deles, tal como seu colega lisboeta, para atingir esse
manancial virgem e inesgotável de criação estética e compreensão humana,
podendo fazer sua a declaração quase goethiana de Serguei Eisenstein: “Não sou
um realista; afasto-me do realismo para atingir a realidade.” Ou o exemplo
pictórico extremo e decisivo de um Van Gogh. Dessa maneira, acrescentando ao
tom e ao repertório elevado da arte clássica a liberdade maneirista e barroca,
e alcançando uma vastidão temática nunca imaginada, a arte contemporânea
penetrou nos mais defendidos baluartes do real, nas suas manifestações internas
ou externas, seja através do ilimitado aprofundamento essencial de um Rilke, de
um Valéry ou de um Pessoa, seja através da visão ineditamente totalizadora da
realidade material de um Cesário Verde ou do extraordinário artista de que
tratamos.
O que, a despeito de tudo isso, de toda
essa intrincada e secundária rede de afinidades e origens, é incomunicável e
primordial em Augusto dos Anjos, e que encerra a sua maior grandeza, é a sua
pessoalíssima e desesperada empatia com a limitação universal, ou seja, a sua
quase mística ânsia do absoluto, que produziu para a poesia brasileira a
manifestação mais pungentemente trágica de toda a sua história.
Alexei Bueno
Parabéns! Belo estudo. Trata-se de um poeta admirável!
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