ODISSEU
Na noite
alta sua sombra sai
Dos
membros lassos, e novamente
Entre os
feácios e os ílios vai
Pisando
as rochas sob o céu quente.
Reencontra
as ondas rotundas, passa
O país
lotófago, inclina o vinho
Na boca
de ouro de heféstia taça,
Revê uma
escarpa, um redemoinho.
Luta com
o mar, conta as próprias dores,
Respira
os prantos de íntimos mortos,
Sonha lá
longe com os cobertores
Do seu
palácio, e arqueja nos portos.
Pois sóis
e noites de irreais esmaltes
Lhe ardem
nas íris. Então acorda
Suado,
ofegante... Calma, não saltes,
Não vás
erguê-la, ela já não borda.
11/6/1992
HELENA
No cômodo
onde Menelau vivera
Bateram.
Nada. Helena estava morta.
A última
aia a entrar fechou a porta,
Levavam
linho, ungüento, âmbar e cera.
Noventa e
sete anos. Suas pernas
Eram dois
secos galhos recurvados.
Seus
seios até o umbigo desdobrados
Cobriam-lhe
três hérnias bem externas.
Na boca
sem um dente os lábios frouxos
Murchavam,
ralo pêlo lhe cobria
O sexo
que de perto parecia
Um
pergaminho antigo de tons roxos.
Maquiaram-lhe
as pálpebras vincadas,
Compuseram
seus ossos quebradiços,
Deram-lhe
à boca uns rubores postiços,
Envolveram-na
em faixas perfumadas.
Então
chamas onívoras tragaram
A carne
que cindiu tantas vontades.
Quando
sua sombra idosa entrou no Hades
As
sombras dos heróis todas choraram.
6/5/1992
OS ETERNOS
Estátuas
dos deuses, brancos,
Um sem
mãos, sem a cabeça
Um outro,
a portar nos flancos
O manto
de um sol que desça
Ou suba,
aléia de gestos
Alvos,
fitando o oceano
Alheia
aos ventos funestos,
Ao sopro
humano e inumano,
Fila de
risos sem boca,
Longos
olhares sem olhos,
Ouvidos
surdos à rouca
Conversação
dos escolhos,
Altivos,
friamente ígneos,
Lançando
dardos sem braços,
Sem alma
urdindo os desígnios
Mais
certos que os nossos passos,
Imortais,
sonhos de nós,
Cristalizados,
latentes,
Sem
antes, hoje ou após,
Gélidos
sobre as torrentes
Do sal
impreciso, erguidos
Nas
decisões sem entraves,
À noite
de astros vestidos,
De dia do
asco das aves,
E
inabaláveis, repletos
Da glória
de si, exatos,
Mutilados
mais completos
Que a
soma dos nossos atos,
Totalidades
corpóreas,
Sorrisos
leves do eterno,
Deuses,
fixas trajetórias
Paradas
num fora interno,
Deuses,
imortais, imotos,
Gestualizadas
conquistas,
Chamas,
vizinhos remotos,
Hálitos
de idos artistas
Há tanto,
que é quase a lenda
Terem
sido, serem, sem
Que
alguma ausência os pretenda,
E a morte
morre também.
2/6/1992
CORÉ
Virgem do
sorriso antigo,
O que
vês, por que sorris?
Que suave
visão feliz
Que não
há aqui, tens contigo?
O que os
teus olhos, passando
Como num
vidro, por nós,
Fitam,
marmóreos e sós,
Além do
nosso olhar brando?
Absorta,
como assistindo
Naus a
voltar da tormenta,
Lanças da
guerra cruenta
Tornando,
e ao sol refulgindo,
Que vês
de melhor do que hoje
Somos,
perpétua esperança,
Mistério
ao qual jamais cansa
A dor que
surge e a que foge?
9/7/1992
TROIA
Tudo
houve aqui, e aqui era tão pouco...
Nem
portais, nem palácio, nem muralhas
Viram
tais blocos de adobes e palhas,
Nem mesmo Aquiles rouco
De dor,
nem um estranho cavalo oco...
Só ele, o
Cego, os viu. Tantas batalhas
De após,
entre milhões, foram migalhas
Junto a esse sonho louco.
Vós,
mortos de outras guerras, sois as lendas
Perto
desses que nunca guerrearam.
Mortal, nunca te prendas
Demais ao
que achas que é. Quem faz o mundo
É o
sonho. Os olhos do cego fitaram
O humano sol mais fundo.
26/6/1992
ÍTACA
Quer
tremam os céus
Que me
auguram morte
Ou se
estorça o deus
Da úmida
cratera
Contra a
minha sorte,
Ítaca me
espera.
Cheire-me
o gigante
Na
inviolável furna,
Beba o
mar bramante
A última
galera
Na
exaustão noturna,
Ítaca me
espera.
Puxem-me
as sereias
Com
sonoros laços,
Prenda-me
em suas teias
Aquela
que impera
Nos
mortais cansaços,
Ítaca me
espera.
Lance-me
bruxedos
A odiosa
maga,
Mordam-me
os rochedos
De dentes
de fera
Onde o
mar nos traga,
Ítaca me
espera.
E lá
longe brindem
Minha
hora funesta,
Mesa e
adega findem
Da mansão
severa
Para a
hedionda festa,
Ítaca me
espera.
E então
durmam tortos
De risos
e vinhos,
Vivos
quase mortos,
Neles meu
ser gera
A ânsia
dos caminhos.
Ítaca me espera!
Barcelona-Madrid,
25/4/1992
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