terça-feira, 24 de outubro de 2017

QUATRO POEMAS SOBRE A MÚSICA



A DECOMPOSIÇÃO DE JOHANN SEBASTIAN BACH




I

Ei‑los, os quatro ombros, os oito pés, cadenciadamente entrando pela porta central da tua sonora igreja.
Agora, pela primeira vez, entras na horizontal por ela, estátua jacente em carne, pré‑esqueleto entre galões e uma peruca enorme condenada ao nada.
A lua mira pelos vitrais; baba prata pelas colunas de São João de Leipzig, tremulantes das sombras negro‑vermelhas das tochas, estaladas pelos pés solenes.
Como um riso de esgar nas trevas, as teclas do órgão estupefatas miram paralisadas teus dedos terríveis, dez mortos sobre teu ventre, morto ambulante sobre quatro vivos.
E atrás, se esgueirando no fundo, entre as volutas de pedra, teus muitos filhos e a tua viúva curvada, roubados mas livres do cego tremendo.
Sob as pálpebras marcham teus olhos, ressuscitados antes da morte, arrancados efemeramente do limbo das sombras para caírem depois no mistério da luz ou do nada.
E dentro deles, e dentro de ti e em ti, tuas moléculas ainda vivas cessando aos poucos, como cosmos que se apagam, grávidas de átomos vertiginosos que giram em vão, e que girarão em vão ainda eternamente, talvez numa pedra, talvez numa mariposa noturna.
Turbilhões de música jorram dos cérebros dos que te acompanham, entre Páscoas e vinho, entre risos campestres e ofícios dos mortos, amontoamento de refeições e espírito, queijos e salmos, abraços paternais e uivos de fúria.
Assim, junto à porta sul, verticalmente existentes, todos estacam, e pousam no chão teu caixão de carvalho, como um barco na beira das águas.
E desces, e desces, e desces e desces e desces, de boca fechada há três dias, de carne já mole, já líquida.
E sob a lua ainda, antes das tochas se apagarem, agora somente entre um cheiro de cal e dois vultos anônimos, pesadamente, gigantescamente, uma laje te cai sobre a cova, úlcera breve no piso da igreja, afirmativa, enorme, como uma mordaça sobre uma boca, sobre a tua boca, uma mordaça eterna.

II

A igreja está vazia, oficialmente vazia.
A lua caiu por detrás dos telhados.
Mas que vulto é aquele, sentado no escuro, fitando teu túmulo?
Que vulto é aquele, com olhos de fome e avidez de alegria manchada por riscos de medo?
Pois vejam todos, oculto no escuro, voraz e calado, tímido e sórdido, ele, o Silêncio.
Veste uma roupa cosida com lábios fechados e línguas já secas, lábios de milhões de extintos, línguas despidas de saliva ou fala.
Senta‑se solenemente, mal tocando o solo com os seus pés de esponja, despojados definitivamente de qualquer ruído.
Dos seus ouvidos que considera um pecado caem duas cascatas de algodão pesadíssimo.
Seu sorriso é a certeza da superioridade do embalador de todos os homens.
Nas costas, imenso, como um manto ou um saco, o patrimônio milenar de todas as vozes e todos os cantos, dos gritos lancinantes e dos balbucios das promessas, guardados avaramente como um tesouro.
Finalmente de pé ele fita a cova, profundamente alto como um precipício refletido em espelho.
E vislumbrando toda a eternidade, desde o mecanismo mudíssimo das galáxias no vácuo, até a brisa mínima e até ela extinta que murmura pela última vez sobre as pirâmides, os túmulos e os templos, ele se infla de orgulho, na distensão de um batráquio.
E mira, como um general vencedor sobre o campo de despojos da batalha definitiva, o humilde retângulo recém‑fechado e raso neste piso onde soarão em vão as pisadas dos homens.
Pois vê ali, temeroso ainda, embrulhado finalmente em suas asas sem som o seu maior inimigo desde o estampido primeiro da hipótese eterna.
E ri, nervoso e incrédulo, um riso que só pode ser visto, absolutamente sem riso para um cego.
E ri, e distende a garganta e as bochechas em mudez absoluta, sozinho na igreja, ou se achando sozinho.
Até que percebe que há alguém entre as sombras.

III

Junto a uma pilastra, olhando o Silêncio e a cova, está suspirando um monstro.
Seu arquejo é um ruído insuportável, poção sonora de bilhões de vozes.
A cada segundo, a cada golpe de vista, ele possui um rosto, e a sua face é como uma moldura móvel para as multidões.
Veste‑o uma armadura de olhos, globos oculares vivos, que procuram ver alguma coisa e todas as coisas.
Do meio deles há mãos que saem, mãos bordadas vivas, que procuram agarrar todas as coisas e alguma coisa.
E nos seus flancos orelhas, querendo ouvir tudo, e línguas tremendo, na ânsia de gritar em todas as línguas.
Mas disto tudo, desta confusão de tudo, se ouve enfim uma queixa insuportável como de criança.
Como de uma criança que não se conforma de não ter os mundos.
Como uma criança que bate os seus pés por não saber de tudo.
Como uma criança que cospe o seu doce por não ser eterna.
E este monstro, enorme e branco, junto à pilastra, chora como um louco,
(E o Silêncio, atordoado em fúria, tapa os ouvidos com as pesadas mãos.)
Pois sob a laje retangular está fechada a sua maior esperança, que não pode estar fechada, que não pode estar fechada.
E esta criança enorme que é o desejo sangüíneo e antiqüíssimo da humanidade se chama Onipotência, e dança.
E com um estardalhaço pavoroso dentro da igreja, que ninguém ouve, exceto o Silêncio, ela baba sobre a laje e sobre o seu inimigo mudo o leite viscoso da esperança eterna.

IV

Com a imobilidade sonora de um inseto morto o Silêncio apavorado bate as suas asas.
Saindo através dos vitrais abandona a cidade que dorme e o tempo que existe.
Soldado alerta, agricultor severo, move‑se ubiquamente em todos os espaços e em todas as épocas, colhendo armamento como se colhem flores.
Viola todos os túmulos, e puxa a mudez da boca dos mortos como de um canteiro uma rosa.
Passeia pelos campos de batalha, assírios, sumérios, hebreus, elamitas, e suga num beijo das bocas caídas a sua própria substância.
Invade os asilos de loucos, e abraça todos os que não falam nunca.
Adentra dançando nas escolas dos surdos‑mudos para se fortificar triunfalmente com a própria visão.
Arrebenta a porta dos hospitais e das casas, para colar seu selo real e orgulhoso na boca dos moribundos sem tempo.
Passeia nos claustros das ordens condenadas ao eterno silêncio como quem se conjugasse a um espelho.
Pula no fundo do mar para encher‑se de glória, com mantos de algas, bolinando a inchadíssima língua dos náufragos.
Depois voa para o vácuo perpétuo onde perambulam estupidamente as inumanas esferas.
E ri novamente, e conhece ele mesmo a tão velha esperança.
E voa titânico e quieto de novo até a igreja, que encontra vazia.

V

Pois ela, a criança velhíssima, a Onipotência congênita, foi rever os que a viram.
Os que a viram no transe do horror, onde à luz do absurdo ela fica mais clara.
E, como se olhando num lago, se viu no último brilho dos olhos de todos os mortos.
E se viu claramente nos que já nem criam na horrível tortura lhes rompendo a carne.
E se achou toda e exata na íris dos que tropeçaram e caíram no abismo.
E nas pupilas dos pregados nos postes.
E entre os cílios dos cercados de fogo.
E sob as pálpebras dos pisoteados por gordos cavalos.
Pois no olhar de todos eles, no seu olhar de que definitivamente aquilo não podia ser a verdade ela achou seu retrato!
E nos olhos febris dos que espancavam a pedra transformando-a em carne ela achou seu retrato!
E nos olhos de louco dos que cobriam o branco das folhas com cantos ela achou seu retrato!
E nos olhos de chama dos que escravizavam os sons ao seu sonho ela achou seu retrato!
E nos olhos sem luz do velho há tão pouco fechado sob a laje branca, para onde ela acabava de voltar agora, mais do que em todos e a soma de tudo ela achou seu retrato!

VI

Mas na noite de Leipzig, enquanto de novo os dois vultos se viam na igreja, os pós do chão se chocavam.
As estrelas alheias desciam no céu como moedas sonâmbulas.
Os burgueses babavam no sono profundo, expandindo e retraindo os ventres, como sacos com vida.
Os morcegos sonhavam de cabeça para baixo nos dedos das árvores.
Os ratos roíam pelos porões a parcela esquecida da ambição humana.
E o planeta girava como um ponteiro monótono em torno do sol enquanto as baratas comiam.
E o sistema solar na Via Láctea à deriva rodava no ritmo da pulsação das artérias.
E as galáxias se afastavam no vácuo enquanto nos pêlos caninos pulavam as pulgas.
E os cometas dançavam de roda sobre as mulheres grávidas que não se sabe o que é que esperavam.
E milhares de sóis explodiam, esfriavam e nasciam, enquanto as pétalas rolavam com a brisa e a teia dos sonhos confusos cobria como uma segunda vida a cidade.

VII

Lá, sob a lápide, teu corpo, Mestre, começava a seguir seu caminho.
Do teu nariz primeiro, e depois da tua boca, foram saindo os exércitos dos vermes.
Após inchar e inchar tua mandíbula se abriu num sorriso sarcástico, e por ela correu o mar verde da bílis.
Sangue negro saiu das orelhas, saiu das narinas, da beira das pálpebras, do pênis e do ânus.
E teus olhos, como duas pérolas enormes, saltaram para fora das órbitas.
Tua pele cobriu‑se de manchas escuras e de verde fechado teu inflado abdômen.
Sob um lago de teu próprio líquido afundou‑se teu corpo.
E a pele caiu flácida como uma veste muito larga por sobre os teus ossos.
Cores incríveis se abriram em odores só suportáveis porque ninguém os sentiu.
Teu cabelo por sob a peruca soltou‑se com ela do liso do crânio.
E tudo seguiu seu caminho como os relógios e os astros, com vermes rolando e sumindo-se por sobre o teu nariz e teus dedos que juntos sumiam-se.
Enquanto em sua côncava caixa de osso o teu cérebro se ia feito água leitosa
Até tudo secar lá no escuro, como as folhas cortadas, na solidão e no olvido.

VIII

Era isso o que então apenas se iniciava, enquanto os dois vultos se fitavam com fúria na beira do túmulo.
Mas o hálito das pautas tomou toda a nave, como antes o incenso.
Das saltitantes notas que tua mão gravara em dança eterna evolou‑se o perfume.
E a vontade onipotente dominadora de tudo rodou como o vento entre as pedras.
E nela, alheia aos dois inimigos eternos, todo o universo dançava.
Pois tua essência se fez triunfalmente a coreógrafa de todas as coisas.
E agora, vulcões e estrelas, eis aí vosso ritmo!
E agora, batalhas e ondas, eis vossos passos cravados!
E agora, constelações e insetos, maremotos e crimes, festas noturnas e incêndios, eis aí vossa senda!
E a tua música, harmonizadora de todos os erros, consoladora de todas as quedas,
Ei‑la a ser, enquanto se baterem sem pena o nosso sonho e a Morte, o ritmo final que já soa e soará sabendo ele unicamente de quem é a vitória.

IX

E solenemente, terrivelmente,
No ritmo que tu lhe deste, na igreja deserta, a Onipotência se ergue
E com as armas de todos os olhos e todas as vozes aponta ao Silêncio
Que corre pelo templo fechado, como um inseto num cubo de vidro,
E contra os jorros de gritos e sonhos que caem sobre ele
Atira a sua clava mortal toda seca das línguas dos mortos
Fazendo cessar um instante o ruído fantástico.

Mas eis que a criança tremenda o ataca de novo
Com uivos, fanfarras e gritos, com trompas e música
E mais uma vez ele escapa no arquejo sem som do seu salto
Para em seguida de novo rodarem na igreja vazia
Como reflexos de ódio, como piões bêbados, tontos,
Mas que não tombam nem cessam a luta frenética da dupla revolta.

Antes prosseguem lutando, água e fogo, rosnando, ao redor de teu túmulo
E os vagidos e cantos, discursos, murmúrios, fustigam o Silêncio temível
Pois milenar é deles a força, ainda mais milenar que o seu nada,
Nem milenar, muito acima do tempo e dos sonhos dos homens,
Que no entanto é o que são. E agora se ergue o urro imenso e terrível
Cheio de cores e rostos, mas mais do que tudo de música,
Desta tua música eterna em que dançam os trêmulos astros
Sem o saberem, quem sabe o sabendo, de sempre, até sempre.

Repleta é a nave do som dos trovões de mil cosmos e de ódio
E de alegria tremenda e profunda derrota e Mentira e Verdade,
Luzes e cores preenchem o espaço de todas as pedras, e tudo
É consumado num jorro tremendo de som e silêncio,
De luz e trevas, de música e nada, apesar da cidade
Não perceber coisa alguma, dormindo inconsciente, na anônima noite.

Sobre o teu túmulo, Mestre, em silêncio travou‑se a estrondosa
Batalha eterna que sempre enxergaste e que há muito sabias.

X

Eis que os teus olhos vêem, de sob a lápide, e como vêem,
A criança imortal, a Onipotência sonhada, que te fita!
Ei‑la, onde bem a fitaste,
Atrás de uma pedra rolada
Sentada sobre um túmulo vazio.

E a cada passo em que o teu corpo se vai decompondo,
Como dois pesos atrelados, tu te vais recompondo ao máximo no Espírito.

Quando daqui a anos e anos abrirem teu túmulo, Mestre,
Ao som de tua música onipresente e eterna
No instante em que as notas voarem das pautas entre as altas colunas
Ao levantar‑se esta lápide anônima e simples sob a qual te deitaste
Em vão te procurarão, pois lá no fundo, caído,
Morto, pisado, acabado, em teu caixão de carvalho,
Como um resto de nada que só a piedade recolhe,
Só encontrarão
O Silêncio.



                                         2 de fevereiro de 1989

(A decomposição de J. S. Bach e outros poemas, 1989)



             A MÚSICA

Resta, de tudo, a casa exata,
O abrigo claro, o firme berço,
A superfície sem reverso
Onde a hora foge mas não mata.

A cidadela imaculada,
A via limpa, o único dia
Cristalizado na alegria,
O ser despido enfim do nada.

O estar perfeito, a só presença,
O rio estático, a contida
Aurora, a profusão da vida,
A estrada às costas da descrença.

Resta o que é em nós perdão e glória
Do nosso pó de ânsia e memória.


                                                               25-11-1998


                                                           (Em sonho, 1999)


     O CHAMADO


De que aurífera zona
Arrancaste a alegria
Da Sétima e da Nona,
Luz jamais dada a um dia?

Qual deus te trouxe o fogo
Que rompe a névoa intensa
Da solidão, da doença,
Sem súplica, sem rogo?

Por nós é que o fizeste.
Dores fracas, sumi-vos
No nada que é isto e este.
Homens, estamos vivos.

A alegria se esconde,
Mas, pletórica, existe.
Uma ígnea dança insiste
Em ter um quando e um onde.



                                                                                         5-7-2016


                                                                                  (Anamnese, 2016)


            O TINTEIRO DE SCHUBERT



Ave a beber no poço, o espelho escuro.
Voa a pena em tua mão. Que impetuoso
Vento a impele a ir e vir, certo e seguro,
Entre a pauta e esse quieto olho viscoso?                            

Disso nasce a paz límpida, a campina
Onde a dor ergue os troncos torturados,
Onde o conflito alteia-se e a calcina
Até a entrada dos zéfiros sagrados.

O que a pena ali sorve, e por que volta?
O que é a mão que a conduz? O istmo, o segundo
Em que da ordem do espírito se solta
Um sol maior do que o que engendra o mundo.




                                                                                  5-3-2016


                                                                             (Anamnese, 2016)



Um comentário:

  1. Grande, Alexei. Parabéns pela iniciativa (ainda que com a little help from a friend). Você contribui pare elevar o nível da internet. Não demora você invade outros territórios digitais: facebook, youtube, instagram. Fiz uma edição corrigida e aumentada de meu livro e pretendo publicá-lo pela Amazon. Quando estiver no ar passo lá na Galeria para a gente comemorar. Isso vai ser no final de novembro. Aquele abraço.

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