segunda-feira, 5 de março de 2018

NIKOS KAZANTZÁKIS - 50 ANOS DE PARTIDA



NIKOS KAZANTZÁKIS – 50 ANOS DE PARTIDA

              (Conferência lida no PEN Clube do Brasil, em 26 de outubro de 2007)


         Há exatamente 50 anos, em 26 de outubro de 1957, às dez e vinte da noite, num hospital de Friburgo, na Alemanha, morria Nikos Kazantzákis, não apenas um dos maiores escritores do século XX, mas um dos maiores espíritos do seu tempo. Já na sua História da Literatura Ocidental, cuja publicação se iniciou nessa mesma década, Otto Maria Carpeaux utilizava essa exata expressão, “um dos maiores espíritos do século XX”. Se, em tese, a grandeza espiritual poderia estar ausente em grandes criadores de outras artes, nos grandes autores literários, pela própria natureza de seu instrumento condenados a tratar dos altos temas humanos, isso parece mais difícil, mas a verdade é que, sob esse aspecto, a posição do autor de Ascese se situa num píncaro dificilmente alcançável.

         A morte de Kazantzákis, em boa parte, foi obra de uma das instituições que ele mais odiou em toda a sua vida: a burocracia. Cansado com as festas e recepções em Cannes para o lançamento do filme de Jules Dassin, Aquele que deve morrer, baseado no seu grande romance O Cristo recrucificado, e dos trabalhos de lançamento de O pobre de Assis, sua biografia romanceada de São Francisco, Kazantzákis decide partir mais uma vez para o Extremo Oriente, que conhecera numa prolífica viagem na década de 1930, Japão e China, especialmente esta última, onde o viajante e o curioso infatigáveis ansiavam por conhecer os resultados da revolução ocorrida oito anos antes. Kazantzákis parte, portanto, de Antibes, onde havia muito se estabelecera, com a sua mulher Helena, em fim de maio daquele ano. Já havia algum tempo o grande escritor convivia com uma leucemia que se mantinha sob controle. Após breves passagens por Berna, Praga e Moscou, o casal chega a Pequim em 21 de junho. Depois da estada na China, e antes de partir para o Japão, é ele obrigado a parar em Hong Kong, para aí se vacinar contra a cólera e a varíola. Essas vacinas podem ter, no entanto, um efeito mortal nos portadores de leucemia, o que não comoveu em nada a burocracia daquele porto, que lhe afirmou ser impossível continuar a viagem sem as próprias. Um médico de bom senso lhe prometeu então aplicar-lhe apenas um simulacro das vacinas, o que Kazantzákis aceitou, mas acabaram por lhe aplicar as vacinas verdadeiras. Oito dias depois, em Tóquio, o escritor se encontrava sob grave ameaça de ter o braço direito amputado. Era preciso voltar imediatamente para a Europa, para a clínica onde se tratava regularmente, em Friburgo. Ao chegar em Copenhague, em estado desesperador, é ele imediatamente hospitalizado, e um grande médico, prêmio Nobel de Medicina, afirma ser imprescindível a amputação de seu braço. Inconformada, sua mulher Helena consegue levá-lo até Friburgo, onde um tratamento de choque salva-o da mutilação. Praticamente recuperado, Kazantzákis dita à sua esposa algumas passagens a acrescentar na sua belíssima autobiografia Carta a el Greco, e recebe visitas diversas, como a do seu grande amigo Albert Schweitzer.  Fora de perigo, acontece então a fatalidade, o escritor contrai a Gripe Asiática, que corria a Europa e o mundo, e que foi especialmente virulenta em sua passagem por Friburgo, enquanto praticamente poupou outras cidades alemãs. Em apenas três dias, no seu organismo combalido de convalescente, ela faz seu trabalho. Não foram poucos os que falaram na perda precoce de Kazantzákis. Ora, nenhuma morte aos 74 anos pode ser exatamente chamada de precoce, mas a sua pujança intelectual e anímica estavam tão intactas, tanta coisa ainda prometia o seu espírito, que muitos não puderam evitar a palavra. Para Kazantzákis, na verdade, grande revoltado com a morte, caberia o extraordinário verso de Jorge de Sena, originalmente uma frase por ele colhida, em conversa informal, de José Blanc de Portugal, ainda que por acaso vazada num alexandrino: “De morte natural nunca ninguém morreu”. Creio que Kazantzákis gostaria de ter escrito esse verso, mas agora que já falamos de sua morte, cuja efeméride do cinqüentenário aqui nos reúne, falemos de sua admirável vida. Uma de suas sínteses, pela obra titânica que produziu, talvez seja a terceira proposição dessa sua epígrafe:

         “Três espécies de almas, três orações:

         1 – Sou um arco em tuas mãos, Senhor. Estende-me para que não apodreça.

         2 – Não me estendas demais, Senhor. Quebrarei.

         3 – Estende-me, Senhor, e que importa se eu quebrar!”

        
         Nikos Kazantzákis nasceu a 18 de fevereiro de 1883 em Candia, cidade central da ilha de Creta, a atual Heráklion, filho de Mikalis e Maria Kazantzákis. Seu pai seria o inspirador do personagem inesquecível que é o Capitão Mikalis, protagonista-título do seu maior romance, geralmente conhecido no resto do mundo como A liberdade ou a morte, divisa dos revolucionários cretenses contra a dominação turca. Teve o escritor duas irmãs mais novas, Anastácia e Helena, e um irmão, Jorge, morto ainda na infância. O que marcou toda a visão do mundo do jovem grego, e marcou a fogo, foi a luta de Creta contra o Império Otomano, com a sua infindável seqüência de rebeliões e de massacres. “Massacre”, foi essa a palavra mais profundamente acolhida no coração do jovem Nikos em todos os seus anos de formação, conforme ele mesmo contaria posteriormente. Enquanto a Grécia continental se libertara dos turcos desde 1829, Creta, esse navio entre o Ocidente e o Oriente, como mais de uma vez a descreveu seu grande filho, permanecia sob a opressão otomana, com o seu povo nulamente vocacionado a suportar opressão alguma.

         A esse arraigado sentimento da liberdade, essa qualidade negativa, que só percebemos pela sua ausência, como a saúde, ou, como escreveu Cecília Meireles:

Liberdade – essa palavra
que o sonho humano alimenta:
que não há ninguém que explique,
e ninguém que não entenda.

uniu Kazantzákis, muito jovem ainda, um senso agudo do que podemos chamar de ancestralidade, uma anterioridade visceral que sempre o levou a perceber-se como um elo efêmero no terrível fluxo de matéria e espírito que é a espécie humana. É justamente durante a sua juventude, na primeira década do século XX, que as escavações de Arthur Evans arrancam do solo de Creta uma civilização desconhecida, anterior à Guerra de Tróia, requintadíssima, dada às artes e à tauromaquia, civilização a que depois se passou a denominar minóica, e cuja escrita _ uma delas, a outra permanece misteriosa _ o Linear B, ao ser decifrada por Michael Ventris meio século depois, revelou não ser outra coisa que uma forma arcaica do grego, língua que é, portanto, em seus muitos avatares, falada e escrita há mais de 3500 anos. “A raça grega é imortal”, é uma frase recorrente na obra de Kazantzákis, dita tanto por seus personagens como por ele próprio. A raça grega é aí, evidentemente, metonímia da espécie humana, mas o autor de Alexis Zorba não escondia o abissal orgulho que lhe dava pertencer a esse povo sem paralelo para nós, ocidentais, e portanto para toda a humanidade.

         Se a obsessão pela liberdade é obviamente oriunda da situação de sua Creta natal, onde em 1866 mil homens, mulheres e crianças, cercados pelos turcos no Mosteiro de Arkadi, fizeram-no saltar pelos ares, preferindo o sacrifício a cair nas mãos do opressor, morrendo mas levando juntos mil e quinhentos soldados turcos, um dos momentos impressionantes da relação da criança que era então o escritor com essa realidade é o dia em que seu pai, sob o plátano no qual, no centro de Candia, três rebeldes gregos haviam sido enforcados pelos turcos, ergueu o menino nos braços e o fez beijar os pés gelados dos três mártires pela independência, conforme narrou Kazantzákis, décadas depois, na Carta a el Greco. Outros dois instantes primordiais na gênese da sua visão trágica, e do heroísmo trágico que dela adviria, foi a impressão de perda da centralidade do homem ainda na infância, ao compreender, com Copérnico e Darwin, a posição periférica da Terra entre os outros astros, essa visão da noite estrelada que sempre o fascinou, e a baixa animalidade de onde viemos, idéia que depois será de grande importância na criação de Ascese.



         O episódio mais decisivo de todos, no entanto, e o mais antigo, talvez seja o seu encontro com a morte. Passemos a palavra para Kazantzákis:

         “Devo acrescentar um pormenor que influenciou profundamente a minha vida: a primeira ferida que a minha alma recebeu. Atingi a velhice, mas ela nunca se fechou.

         Devia ter os meus seis anos e meu tio levou-me, pela mão, ao pequeno cemitério de São Mateus, na cidade, para ver, dizia ele, uma vizinha.

         Era primavera, o cemitério estava juncado de camomila; um roseiral, ao canto, estava coberto de pequenas rosas de abril. Devia ser meio-dia, o sol aquecera a terra e sentia-se, por ali, o cheiro da erva. A porta da igreja encontrava-se aberta, o padre pusera incenso no turíbulo e colocara a estola; galgou o patamar e dirigiu-se para os túmulos.

         _ Por que é que ele faz aquilo? _ perguntei ao meu tio, respirando profundamente o odor do incenso e da terra. Era um cheiro quente, parecia-me um pouco obcecante, lembrava-me o cheiro do banho turco onde minha mãe me tinha levado no sábado anterior.

         _ Por que é que ele faz aquilo? _ perguntei novamente a meu tio, que caminhava em silêncio por entre os túmulos.

         _ Cala-te, vem atrás de mim que já vês.

         Passamos por trás da igreja e ouvimos pessoas a conversar; cinco ou seis mulheres, vestidas de luto, estavam, de pé, em volta de uma campa; dois homens levantavam a pedra tumular e um deles desceu para a cova e começou a escavar. Aproximamo-nos e paramos à beira da campa aberta. _ Que fazem eles? Perguntei: _ Desenterram ossos. _ Quais ossos? _ Já vais ver.

         O padre estava de pé, junto da cova, agitava o turíbulo de cima abaixo e murmurava orações. Debrucei-me sobre a terra cavada de fresco: veio-me um cheiro a bafio, um cheiro a podridão e tapei o nariz; senti náuseas, mas não me fui embora, esperei. _ Os ossos? Que ossos? _ perguntava a mim próprio, e esperava.

         De súbito, um homem que estava dobrado e escavava, soergueu-se; apareceu metade do corpo por cima da cova; exibia um crânio nas suas mãos. Esvaziou-o da terra, mergulhou os dedos nas cavidades dos olhos para tirar-lhes o barro; em seguida o depôs na borda da campa, inclinou-se de novo e recomeçou a cavar.

         _ Que é isto? _ perguntei, apavorado, a meu tio.

         _ Não vês, é uma cabeça de morto, um crânio.

         _ De quem?

         _ Não te lembras dela? Da nossa vizinha Anika.

         _ De Anika! _ As lágrimas jorraram, comecei a gritar. _ De Anika! De Anika! _ gritava. Atirei-me para o chão, apanhei todas as pedras que encontrei e pus-me a lançá-las ao coveiro. Lamentava-me, gritava _ como ela era bela, como cheirava bem! Costumava ir à nossa casa, punha-me sobre os seus joelhos, tirava o pente dos cabelos e penteava-me: fazia-me cócegas debaixo dos braços e fazia-me rir; piava como um passarinho...

         Meu tio tomou-me nos braços e afastou-me dali; falava-me com cólera: _ Por que choras? Que esperavas? Ela morreu. Todos temos de morrer.

         Mas eu recordava-me dos seus cabelos louros, dos seus lábios vermelhos que me beijavam, dos seus grandes olhos, e agora...

         _ E os seus cabelos _ gritava _ os seus lábios, os seus olhos?...

         _ Acabou-se, acabou-se. A terra os comeu.

         _ Por quê? Por quê? Não quero!

         Meu tio sacudiu os ombros:

         _ Quando cresceres saberá por quê.

         Nunca o soube. Cresci, envelheci e nunca o soube.”

        
         Mas se a relação de inconformidade com a morte permaneceu como um dos pilares desse espírito profundamente místico, a ânsia pela independência da terra natal alcançou seu apaziguamento no dia 9 de dezembro de 1898, apaziguamento que lhe permitiu mais livremente ampliá-la para uma ânsia libertária de toda a humanidade. A descrição da reação do seu pai ao dia secularmente aguardado é antológica, na seqüência da descrição do estado geral da ilha após o fim da grande espera que não pode deixar de nos lembrar o nosso tão próximo Sebastianismo:



         “Os dois maiores dias da minha vida foram estes: o dia em que o príncipe Jorge desembarcou em Creta e, muitos anos depois, o dia em que, em Moscou, a Revolução festejou os seus dez anos. Nesses dias senti que as barreiras podem afundar-se _ os corpos, os espíritos, as almas _ e que os homens podem regressar, após sangrentas e terríveis atribulações, à unidade divina original. Já não há eu, tu, ele, tudo se transforma numa unidade e essa unidade é uma profunda embriaguez mística, a morte perde a sua foice, já não há morte, morremos um por um, separadamente, mas todos juntos somos imortais, abrimos os braços e abraçamos, depois de tanta fome, tanta sede e tanta revolta, como filhos pródigos, os nossos dois pais, o céu e a terra.

         Os cretenses lançavam ao ar os seus lenços de cabeça, as lágrimas corriam-lhes pela cara e molhavam as suas barbas brancas de capitães, as mães erguiam os filhos nos braços, para que eles vissem o gigante louro, o príncipe das lendas, que tinha ouvido a lamentação de Creta e partira, há séculos, montado num cavalo branco, como São Jorge, para libertá-la. Durante tantos séculos os olhos dos cretenses petrificaram-se de espera à força de olhar o mar: vêem-no, não o vêem, em breve o veremos... Ou se tratava de uma nuvenzinha de primavera que os enganava, ou de uma vela branca, ou, em plena noite, um sonho. Mas a nuvem, dissipava-se, a vela desaparecia ao longe, o sonho se apagava e os cretenses voltavam a fixar os olhos na direção do Norte, do grego, do moscovita, do Deus impiedoso que andava tão lentamente.

         E agora Creta fora abalada, os túmulos se abriram, um grito se elevara do cimo do Psiloriti: Ele está a chegar! Aí vem ele! Ei-lo! E os velhos capitães tinham descido das montanhas com as suas feridas profundas e as suas pistolas de prata, os jovens vieram com os seus punhais de cabo preto e as suas violas sonoras, os sinos tocavam, a cidade estava toda ornamentada com palmas e mirtos, o louro São Jorge encontrava-se de pé sobre o molhe juncado de ramos de oliveira e o mar cretense brilhava detrás dos seus ombros.

         Os cretenses bebiam nas tabernas, cantavam, dançavam, tocavam viola, mas não estavam aliviados. O seu corpo já não os continha, erguiam os punhais, cortavam os braços e as coxas para que o sangue corresse, para que ficassem aliviados. Na igreja, o velho metropolita levantou as mãos na direção da cúpula e olhou o Pantocrator; queria fazer um discurso, mas a sua garganta estava apertada. _ Cristo ressuscitou, meus filhos! _ Gritou, nada mais podendo articular. _ Ressuscitou verdadeiramente! _ O grito brotou de todos os peitos como um trovão e os lustres da igreja mexeram-se como se a terra tivesse tremido.

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         Passou um gigante, carregando ramos de loureiro; viu meu pai e parou, gritando: _ Cristo ressuscitou, capitão Mikalis! _ Creta ressuscitou _ respondeu meu pai, colocando a mão sobre o coração.

         Avançávamos; meu pai tinha pressa e eu corria atrás dele para o acompanhar.

         _ Aonde vamos, pai? _ perguntei, quase sem poder respirar.

         _ Vamos ver o teu avô, anda!

         Chegamos ao cemitério, meu pai abriu com um safanão a porta de ferro; havia uma caveira desenhada na ombreira e embaixo dois ossos cruzados, o símbolo de Cristo ressuscitado.

         Viramos à direita, sob os ciprestes, galgamos as campas pobres, com uma cruz partida, privada de lamparina. Meu pai deteve-se diante de uma dessas campas pobres: um pequeno monte de terra, uma cruz de madeira e, sobre esta, um nome, apagado pelo tempo. O pai tirou o lenço da cabeça e prosternou-se, com a face contra a terra; escavou o solo com as unhas, fez um pequeno buraco, como um funil, onde pousou a boca e gritou três vezes:

         _ Pai! ele chegou! Pai! ele chegou! Pai! ele chegou!

         A sua voz aumentava sempre, rugia. Tirou do bolso um frasco de vinho, deitou-o gota a gota no buraco, esperando, de cada vez, que ele descesse, que a terra o bebesse. Depois ergueu-se de um salto, benzeu-se e olhou para mim. Os seus olhos cintilavam.

         _ Ouviste? _ Perguntou-me, com a voz rouca de emoção _, ouviste?

         Eu não falava, nada tinha escutado.

         _ Não ouviste? _ disse o pai enfurecido. _ Os seus ossos rangeram.”


         Bem antes disso, durante a insurreição cretense de 1889, toda a sua família se refugiara no Pireu, retornando seis meses depois. Na busca de outro local não conflituoso o casal Kazantzákis e os filhos viveram, entre 1897 e 1899, na ilha de Naxos, nas Cíclades, época que guardará uma aura paradisíaca para o futuro escritor. Lá Kazantzákis estudou na escola francesa da Sainte-Croix, onde aprendeu francês e italiano. Entre as várias línguas que viria a dominar, o francês manteve um lugar de destaque, tendo ele escrito diretamente nesse idioma seus romances Toda-Raba e O jardim dos rochedos. A França seria, finalmente, o paradeiro final do viajante incansável que foi Kazantzákis, na sua casa de Antibes, a mais grega das cidades francesas.

De volta à sua cidade natal, lá ele continuou seus estudos, de 1899 a 1902. Nesse ano transfere-se para Atenas, onde, em 1906, se forma na faculdade de Direito da Universidade daquela capital, o mesmo ano em que publica sua primeira novela, O lírio e a serpente. Em maio do ano seguinte sua peça O dia nasce ganha um concurso dramático na mesma Universidade. Em outubro, finalmente, chega a um momento decisivo em sua biografia, partindo para Paris, para estudar filosofia. Na capital francesa segue os célebres cursos de Henri Bergson em 1908 e 1909. Escreve um romance, Almas partidas, publicado na imprensa, e um ensaio filosófico sobre o Pragmatismo. Em 1909 publica uma tese “Frederico Nietzsche na filosofia do direito e da cidade”, assim como uma tragédia em um ato intitulada Comédia, na revista Krétiké Stoa, com um assunto praticamente idêntico ao de Huis-Clos que Sartre publicará décadas depois. Ainda que possa parecer absurda uma possível influência, vale lembrar que um dos maiores amigos de Kazantzákis, Albert Schweitzer, era primo de Sartre. Em outra revista de Atenas publicou em seguida o ensaio “A ciência está falida?”

Em 1910 outra tragédia sua, Sacrifício, foi premiada num concurso teatral. A obra dramática de Kazantzákis, muito vasta e ainda apenas parcialmente conhecida fora da Grécia, como a sua poesia, se estende, de fato, do início do século até a sua morte, sendo o gênero a que mais constantemente se dedicou. Algumas de suas tragédias, no entanto, alcançaram grande sucesso, especialmente as admiráveis Melissa e Teseu.

Em outubro de 1911 Kazantzákis se casa com Galatéia Alexiou, romancista cretense como ele, e se transfere para Atenas. Os quatro anos seguintes serão para ele de grandes trabalhos de tradução, com títulos de Darwin, A origem das espécies; Bergson, O riso; William James, Teoria da emoção; Nietzsche, O nascimento da tragédia e Assim falou Zaratrusta; e Eckermann, com as célebres Conversações com Goethe. Em 1912 publica um longo ensaio sobre Bergson e se alista como voluntário nas Guerras Balcânicas, mas não chega a participar do conflito. Em 1914, ano em que estoura a guerra, conhece o poeta Angelos Sikelianos, com o qual passa quarenta dias no Monte Athos, meditando sobre o destino. No ano seguinte os dois amigos viajarão exaustivamente através da Grécia, período durante o qual Kazantzákis compõe as tragédias Ulisses e Nicéforos Focas.

Esse é o momento em que Kazantzákis sofre uma espécie de crise tolstoiana, uma dúvida sobre ser ou não a arte a resposta para as necessidades prementes da humanidade em crise, em vez de alguma forma de uma nova religião, ou de uma nova mitologia. Oriundo de um mundo arcaico, Kazantzákis nunca ocultou a angústia com que via a civilização de massa e a industrialização explosiva condenarem ao desaparecimento alguns valores insubstituíveis desse mesmo mundo arcaico. Poucos intelectuais do século XX foram críticos como ele da ideologia do progresso, antevendo em suas viagens contradições civilizatórias que só começaram a se tornar visíveis muito recentemente. Na verdade, seu feroz amor pelo homem, o sopro profético do seu verbo, a sua violência de vidente não são de maneira alguma “modernas”, assim como a meta claramente soteriológica, salvífica, que domina toda a sua obra, a mais distante de qualquer forma de diletantismo ou de arte pela arte que se possa imaginar, antes uma pura, inesgotável e desesperada busca de sentido para o absurdo. O grego Kazantzákis está mais perto de seus ancestrais da Antigüidade do que normalmente se imagina.



O ano de 1917, ainda em plena Guerra, é um dos mais decisivos de sua vida. Abandonando a literatura pela ação, em resposta à crise por que passava _ o que em pouco se revelará desastroso _ resolve explorar uma mina de linhita em Magna, na Moréia, para onde parte acompanhado de certo Giórgis Zorba, um macedônio dotado de um vitalismo a toda prova e de uma espécie de sabedoria infusa que ele transformará, um quarto de século depois, num dos grandes personagens romanescos do século XX, e sobre o qual voltaremos a falar. Em outubro, após o fiasco completo de sua atividade mineradora, parte para a Suíça, e em seguida em peregrinação pelos locais marcantes da vida de Nietzsche, cuja descoberta lhe causara um impacto acima de qualquer descrição. Para Kazantzákis Nietzsche se revelara o grande mártir, o Dionisos crucificado, cujo destino fora expor cruamente aos homens o abismo de desespero que se abre sob os seus pés, o abismo antevisto por Buda, o criador do sistema mais terrivelmente pessimista na história da especulação humana, e trazido para o Ocidente por Schopenhauer. Retornando da tentativa de ação para os braços da arte, ele cumpria um caminho confessado em um parágrafo de seu texto “Em que creio”: “Experimentei diversos caminhos para encontrar aquele da minha libertação: o do amor, o da busca filosófica, o da curiosidade científica, ainda o da regeneração social. Por fim me engajei naquele, árduo e solitário, da poesia.”

Em 1919 Kazantzákis retorna à Grécia, e prossegue suas viagens pelo país. Em maio é nomeado diretor-geral do Ministério de Assistência Social por Venizelos. Entre julho e agosto chefia uma missão de repatriamento de gregos do Cáucaso, conseguindo salvar cento e cinqüenta mil refugiados. Seu grande amigo Yannis Stavridakis morre em Tiflis nesse momento. Em 21 de agosto Kazantzákis chega a Paris para prestar contas a Venizelos. Em novembro de 1920, com a derrota do Partido Liberal, deixa o Ministério e parte para Paris, Alemanha, Áustria e Itália. O ano seguinte será de mais viagens pela Grécia, com Sikelianos ou com o compositor Costas Sphakianakis. Em 1922 assina um contrato, com uma editora de Atenas, para escrever livros didáticos de História. Passa a morar em Viena, onde esboça a tragédia Buda. Nessa época lhe acontece o estranho episódio de uma súbita e horrível deformação da face, no momento em que ia encontrar-se com uma mulher, encontro que, a seu ver, daria início a um relacionamento desastroso. Submete-se então a um tratamento psicanalítico com o Dr. Wilhelm Steckel, discípulo de Freud, que considera o seu caso um exemplo típico de somatização histérica, conhecido como a rara “doença dos ascetas”. Esse episódio reaparecerá em sua obra, tal qual, com o personagem Manólios, de O Cristo recrucificado. Muda-se para Berlim em setembro, numa Alemanha em plena crise, e no mesmo momento em que a Grécia é fragorosamente derrotada pelos turcos na sua tentativa de recuperar seus territórios da Ásia Menor.



Em 1923 termina Kazantzákis a composição de Ascese, ou Salvatores Dei, os Salvadores de Deus. Essa obra, cuja melhor caracterização literária seria a de poema em prosa filosófico, é ao mesmo tempo a síntese e a matriz geradora de toda a sua obra posterior, a sua coluna vertebral, mais ou menos como o insuperável poema platonizante “Sôbolos rios que vão” o é para a lírica de Camões. Escrito num tom doutrinário, imperativo, quase catequista, Ascese permanece como um dos textos mais fascinantes produzidos pela riquíssima literatura do século XX. Seu final, que não pode, no entanto, resumir a sua riqueza de conteúdo, espécie de profissão-de-fé do heroísmo trágico, todo escrito em letras maiúsculas, diz:

“Creio num Deus guarda-fronteiras de duplo nascimento, militante e sofredor, poderoso mas não onipotente, guerreiro dos mais recuados confins, imperador de todas as forças da luz, visíveis e invisíveis.

Creio nas máscaras efêmeras e inumeráveis que Deus usou ao longo dos séculos e por trás de seu fluxo incessante distingo a indissolúvel unidade.

Creio na sua luta tenaz e insone para domar a matéria e fazê-la frutificar _ fonte que dá vida às plantas, animais e homens.

Creio no coração do homem, eira terrena onde o guarda-fronteiras combate contra a morte.

‘Socorro!’ gritas, ‘socorro!’, gritas, e eu te escuto, Senhor.

Dentro de mim, os antepassados, os descendentes, as raças todas, a terra inteira ouvem o teu grito com terror e alegria.

Bem-aventurados os que ouvem e correm a libertar-te, Senhor, dizendo: ‘Só eu e tu existimos’.

Bem-aventurados os que te libertam, unem-se a ti e dizem: ‘Eu e tu somos um’.

E três vezes bem-aventurados os que carregam nos ombros, sem vergar ao seu peso, o grande, o extraordinário, o terrível segredo:

Sequer este um existe!”

Mas a verdade final de Kazantzákis, no fundo, não é a de Ascese. Acima dessa convicção racional, sobre a qual se construía a sua visão trágica, havia a convicção não racional, ou mais que racional, do grande místico que ele foi, o mesmo que afirmou um dia: “Sei, sem dúvida, que isso não é verdadeiro, mas sei também que existe uma coisa mais verdadeira que a verdade.” No verão desse mesmo ano ele visita a casa natal de Nietzsche. Sua mulher se une a ele em Berlim, no fim do ano.

Em 1924 Kazantzákis visita Nápoles, Roma e Assis, terra do santo que foi um dos seus heróis de sempre. Durante esse périplo pela Itália se encontra com Marinetti. De volta à Grécia, e já em processo de divórcio com Galatéia, conhece, em agosto, Helena Samios, sua futura mulher. No fim do ano, à beira do mar, perto de Candia, inicia a redação da sua obra máxima, que terá outros seis estados até a forma definitiva, Odisséia.

No ano de 1925, continuando a redação da epopéia, Kazantzákis viaja longamente pela Grécia continental e insular. O momento central do ano será, no entanto, a sua partida, a 13 de outubro, para Moscou, como correspondente do jornal Eleutheros Logos. Sempre dominado pela sua visão algo budista da eterna destruição e reconstrução de todas as coisas que rege tanto o ritmo cósmico quanto o humano, a sua curiosidade pela inédita experiência da revolução soviética é imensa, assim como a sua atração pela figura de Lênin como o mais radical condutor de almas de sua época, fascinação que nunca abandonará. Sem nunca ter sido comunista, fato aliás impossível, levando-se em conta a sua feroz independência de caráter, Kazantzákis observa tudo com uma mistura de simpatia, esperança e espanto, percebendo de forma quase clarividente o caráter inequivocamente autocrático do partido, as perseguições e as tragédias que daí adviriam, mas reconhecendo algo da necessidade de tudo isso após o caldeirão de violências da guerra civil. Como sempre, o que o fascinava não era essa ou aquela ideologia, mas o irrefreável esforço humano em direção a alguma coisa indefinida que ele descreverá como poucos em Ascese. De todos os horrores de que foi testemunha, o que mais o impressionou foi a grande fome, época em que qualquer um que caminhasse por ruas escuras se arriscava, ao passar pelo vão de uma porta, a ser apanhado e literalmente devorado pelos famintos, ou a assistir ao comércio tétrico de corpos de crianças mortas de inanição, trocados entre uma família e outra para que cada qual não fosse obrigada a comer os de seu próprio sangue. Há fotografias por ele tiradas nessa época que ele mesmo considerava impublicáveis.

Sobre o sentido real dessa experiência escreverá ele mais tarde: “Cada vez mais, percorrendo a URSS, eu sinto essa coisa inumana que já me devorava na Grécia. O que me interessa não é o homem, nem a terra, nem o céu, mas a chama que devora homem, terra e céu. A Rússia não me interessa, mas a chama que devora a Rússia. Melhoria da sorte da massa ou da elite, felicidade, justiça, virtude, engodos populares que não me enganam. Uma só coisa me prende; eu a busco por toda parte e meus olhos a seguem com espanto e alegria: a linha rubra que perfura e atravessa, como um rosário de crânios, os homens. Eu só amo esta linha rubra, minha única alegria é senti-la perfurar e atravessar meu crânio partindo-o, tudo mais me perece efêmero, beatamente filantrópico e vegetariano, indigno de uma alma que se libertou de toda a esperança.”

A aura de comunista, que sempre envolveu Kazantzákis, não resiste a um exame mais atento de sua obra, talvez especialmente de seus livros de viagens, subproduto biográfico desse viajante compulsivo, um dos intelectuais de sua época mais próximos do lema terenciano do “Sou humano, nada do que é humano me é estranho.” Em sua viagem ao Japão, após andar de riquixá em Kioto _ transporte que, segundo ele, humilhava quem puxava e quem era puxado, e no qual sem dúvida só embarcou para perceber isso _ escreveu Kazantzákis:

“Qual o nosso dever?, perguntava-me eu sem tirar os olhos de suas costas ensopadas de suor. Uma única coisa: contribuir para que uma tarefa de coolie seja cumprida por aquele que não pode aspirar a nada melhor. Estabelecer, mesmo momentaneamente, uma hierarquia exata e justa e não a de hoje, injusta e inumana, onde aqueles que deviam ser coolies circulam a cavalo e comandam.

A justiça não significa que todos sejam senhores ou escravos. A justiça significa que o ser de natureza servil cumpra as funções de servidor e o ser de natureza senhorial funções de senhor. Pois eu creio firmemente na desigualdade dos seres. E se hoje, no mundo em que vivemos, uma alma honesta execra naturalmente a organização social, não é por existirem senhores e escravos, mas porque os senhores atuais perderam as virtudes nobres dos senhores de outrora e se transformaram em escravos de si próprios.”

Um texto como esse o aproximaria mais de uma idéia de república aristocrática, como teorizava seu contemporâneo muitas vezes julgado até fascista Fernando Pessoa, do que de qualquer forma de comunismo. A verdade é que o próprio aristocratismo de um Fernando Pessoa só o podia afastar do extremo plebeísmo boçal de todos os fascismos, assim como o desespero de Kazantzákis, um desespero quase dostoievskiano, com o sofrimento material da humanidade o afastaria naturalmente de qualquer república aristocrática.

Mais estranho ainda a uma ideologia comunista é o seguinte parágrafo admirável, do mesmo livro de viagens:

“Bendita seja a prodigalidade, aquilo que nós chamamos luxo, supérfluo, extravagância. Ser civilizado significa considerar o luxo como uma necessidade, ultrapassar o animal e não poder se contentar com a comida, a bebida, o sono e o sexo. No instante em que o bípede sem penas aspira ao supérfluo, ele começa a se transformar num ser humano. Todo bem que este mundo possui, tudo que foi salvo dos formigueiros humanos é um luxo: uma pintura, uma flor esculpida, um canto, uma idéia que se eleva acima do espírito mediano. O luxo é a maior necessidade do homem superior. Aquilo que ultrapassa seu coração, isso é o seu verdadeiro coração.”

Podemos imaginar como esses dois trechos repercutiriam em qualquer célula do partido comunista pelo mundo. No campo religioso, a controvérsia é a mesma, entre um Kazantzákis ateu e o extremo oposto disso. Tais são as contradições inerentes à riqueza de qualquer grande espírito cioso de sua liberdade. Na verdade, como o maior dos seus mestres, dos seus “condutores de almas”, a maior fixação de sua vida, ele vinha não para trazer a paz, mas a espada, ou poderia como ele afirmar: “Eu vim trazer o fogo à terra e que quero eu senão que ele se acenda?” Não é à toa que a sua biografia escrita por sua viúva, e altamente calcada em sua própria correspondência, foi por ela intitulada O dissidente.

No ano seguinte, 1926, Kazantzákis retorna a Atenas, onde se instala com Helena, seu divórcio de Galatéia tendo sido publicado em 28 de abril. Viaja à Palestina com sua esposa e dois amigos. Em agosto parte para a Espanha, onde entrevista Primo de Rivera. Em outubro, agora outra vez na Itália, entrevista Mussolini. Conhece nessa época o jovem escritor cretense Pandélis Prevelákis, que se tornará o seu maior amigo e colaborador.

Em 1927 Kazantzákis parte para o Egito e o Monte Sinai, viagem que lhe renderá um outro livro. A partir de maio se instala numa casinha em Egina, completamente isolado na criação de sua Odisséia, cuja primeira versão ele ali consegue terminar. A 20 de outubro parte novamente para Moscou, convidado para as festas de dez anos da Revolução. Conhece nessa ocasião Panait Istrati, o escritor romeno, também conhecido como o Górki dos Bálcãs, hoje injustamente pouco lembrado, talvez pelo fato de ter escrito toda a sua obra em língua francesa, sendo considerado um romeno na França e na Romênia um escritor francês, ao contrário de outros romenos perfeitamente assimilados, como seu amigo Ionesco ou Cioran. Após uma longa viagem pelo Cáucaso e o Mar Negro, Kazantzákis e Stratis chegam a Atenas no primeiro dia de 1928. 




Após tomarem parte num comício no teatro Alhambra, os dois são processados, o que resulta para ambos na proibição de qualquer atividade política. Em abril retornam à Rússia, onde Kazantzákis se aproxima do cinema soviético em seu apogeu _ com os nomes, em plena atividade, de Eisenstein, Pudovkin, Dovchenko ou Vertov _ escrevendo mesmo um roteiro, O lenço vermelho, mas se dedicando, na mesma época, a retoques no texto de Ascese. Os dois amigos se encontram com Gorki nesse ano. Até abril de 1929 viaja por todo o imenso território soviético, voltando finalmente para Berlim. Vive durante onze meses na Tchecoslováquia com Helena, e escreve, diretamente em francês, Toda-Raba, seu primeiro romance, com uma forma muito próxima àquela do roteiro cinematográfico. A base desse romance é exatamente a experiência das festas internacionais pelo primeiro decênio da revolução. Entre personagens de todas as procedências, reais ou fictícios, Toda-Raba, um régulo africano, é o mais culturalmente afastado daquela experiência sócio-econômica extrema. O final do romance, dentro do mausoléu de Lênin, antecipa o processo que Kazantzákis usará, anos depois, no impressionante final de A última tentação.



O ano de 1930 o encontra a compor uma História da Literatura Russa em dois volumes. Transfere-se novamente para Paris. Em 1932 morrem seu pai e sua mãe, a perda da última sendo-lhe especialmente dolorosa. Nesse mesmo ano termina terceira versão da sua Odisséia, que terá, como já dissemos, sete redações até o seu estado final, composta de 33.333 versos de dezessete sílabas, muito próximos dos hexâmetros homéricos, espalhados por um manuscrito de 1984 páginas.  Trata-se da maior epopéia do Ocidente, e do maior monumento da poesia grega moderna. Nela Kazantzákis retoma as aventuras de Odisseu exatamente onde Homero parara, e o acompanha até sua morte nos gelos do Pólo Sul. É impossível resumir, no espaço desta curta homenagem, a riqueza inesgotável dessa obra, síntese final do niilismo místico, do heroísmo trágico de Kazantzákis, delineado primeiramente em Ascese, do seu “olhar cretense” entre o Oriente e o Ocidente, entre o élan vital bergsoniano e o abismo de Nietzsche.

Dedica-se então a grandes trabalhos a quatro mãos com Prevelákis, ao mesmo tempo em que traduz a Divina Comédia integralmente, com métrica e rima, em quarenta e cinco dias. Em outubro retorna a Madrid, onde se encontra com seu amigo Juan Ramón Jimenez, Benavente e Valle-Inclán. Nos dois anos seguintes, 1933 e 1934, entrega-se à composição dos seus “Cantos” ou “Elegias” em terza rima, dedicados aos condutores de almas que lhe serviram de exemplo, Gêngis Khan, Yannis Psycharis _ o grande líder na luta pela adoção do demótico como língua literária da Grécia, a que Kazantzákis aderiu entusiasticamente _, Santa Teresa, Lênin, Dom Quixote, Maomé, Nietzsche, Buda, Moisés.

1935 é o ano de sua grande viagem à China e ao Japão, que resultará num livro de viagens com notáveis antevisões sobre o destino dos dois países, e também com uma impressão penosa, especialmente no caso chinês, daquele Extremo Oriente que parecia longe de despertar, e sobre o qual escreveu: “Nesses países profundos onde os mortos dominam os vivos, não há indivíduo, há apenas a massa, e sobretudo a massa terrível, impenetrável, dos mortos. Cada minuto amarelo tem o peso de séculos.” Se em 1936 Kazantzákis escreve O jardim dos rochedos, espécie de adaptação romanesca, parcialmente em forma de diário, do conteúdo de Ascese, reutilizando-o integralmente _ tal como sete anos antes escrevera Toda-Raba, esse romance que é parcialmente uma reportagem em estilo cinematográfico _ será a partir da década de 1940 que o gênero dominará a sua obra imensa, outorgando-lhe uma fama internacional que a sua poesia, como sempre acontece, não lhe propiciara. Kazantzákis é, de fato, um romancista da completa maturidade, quando não da velhice.

  Entre 1941 e 1942 termina a tragédia Buda e inicia a redação de Alexis Zorba. Invadida a Grécia pelo Eixo, Kazantzákis abandona Egina, onde estava isolado, e segue para Atenas, pensando em partir para uma ação direta na resistência grega. Hospeda-se com Pandílis Prevelákis, e reencontra Angelos Sikelianos. Traduz nessa ocasião a Ilíada para o grego moderno. Em 1943 termina a sua obra mais célebre, a Vida e obra de Alexis Zorba, brilhante desde o título, geralmente traduzida como Zorba, o grego, livro sem paralelo, o único romance picaresco-trágico da literatura ocidental. Quase um livro de memórias, sob muitos aspectos, nele Kazantzákis buscou imortalizar a figura do Giórgis Zorba que conhecera em 1917. Já outra guerra ensangüentava a Europa, quando lhe chegou o telegrama comunicando a morte do personagem extraordinário, que depois correria o mundo no filme de Cacoyánnis. Assim narra o autor aquele momento:

         “Mas que fazer, pensei eu durante toda a noite, que fazer para esconjurar a morte, a sua morte?

         Abrira-se o alçapão sobre as profundezas do meu ser, e as recordações saltavam para fora, empurrando-se umas às outras, e rodeavam-me o coração, exasperadas. Mexiam os lábios e gritavam-me para que reunisse Zorba, espalhado pela terra, pelo mar e pelo vento, e o ressuscitasse. E não era esse o dever do coração? Não fora para isso que Deus o criara, para ressuscitar os seres bem-amados? Portanto, deves ressuscitá-lo.

         Ainda que seja a morte, disse eu encorajado pelo sol alegre que incidia sobre o guerreiro e lhe concedia a vida, ainda que seja a morte, nós iremos fazer com ela uma dança. Seremos nós, meu coração, a dar-lhe o nosso sangue para que ele sobreviva; faremos tudo o que pudermos para que viva um pouco mais esse maravilhoso glutão, beberrão, besta de carga e mulherengo, esse vagabundo. O dançarino e o guerreiro. A alma mais vasta, o corpo mais resistente, o grito mais livre que conheci em toda a minha vida...”

         Era o retorno da sensação que tivera na infância em relação ao seu avô materno: “Este avô foi o primeiro a me fazer desejar não morrer, para que meus mortos não morressem. Desde então muitos dos que amei morreram, eles desceram não na terra, mas na minha memória, e eu hoje sei que enquanto eu viver eles viverão também.” Do mesmo modo que reconhecia perfeitamente as suas armas para essa missão: “Ah!... As palavras! As palavras! Para mim, pobre de mim, não existe outra salvação. Não tenho em meu poder mais do que vinte seis soldadinhos de chumbo, as vinte e seis letras do alfabeto: eu decretarei a mobilização, eu levantarei um exército, eu lutarei contra a morte.”



Em 1950 escreve O Cristo recrucificado, obra-prima indiscutível, com personagens imortais como o Agá de Lyncovrissi, o grupo dos notáveis da cidade, o Pope intolerante, o místico Manólios, o padre Photis ou o mascate Yannakos e seu mais do que amado burro Youssof. Tal romance teve, sem dúvida, na nossa opinião, importância na gênese de O pagador de promessas, de Dias Gomes, Yannakos sendo, claramente, uma das matrizes para Zé do Burro, assim como o Pope de Lyncovrissi o é para o pároco cruel da igreja de Santa Bárbara.

Da mesma época é a criação de A liberdade ou a morte, ou Capitão Mikalis, no título original, o maior romance de Kazantzákis, dos maiores de todo o século XX, pela perfeição e complexidade estrutural, pela impressionante grandeza épica, pela variedade de personagens como poucos narradores já alcançaram. Misturando o épico, o amoroso e o costumbrista de maneira genial, mais ou menos como Tasso, em sua Jerusalém libertada, conseguiu tecer uma perfeita tapeçaria com o bélico, o amatório e o religioso, trata-se do seu grande romance cretense, a epopéia das incessantes revoluções da ilha mítica contra o opressor. Os personagens são criações inesquecíveis, desde a figura feroz do protagonista, inspirado no pai do autor e com o seu mesmo nome, até as de Nuri Bey, de sua amante circassiana, do centenário pai de Mikalis, do seu sobrinho Kosmas, do seu filho, obviamente um alter ego do pequeno Kazantzákis, de Ventusos, do Capitão Polyxinguis, de Bertoldo, do alucinado místico muçulmano Effendine, cuja única alegria era, de seis em seis meses, embebedar-se de vinho, comer porco e xingar Maomé na casa do capitão, obrigando-o a ameaçá-lo de morte caso não fizesse tudo isto, para assim diminuir a enormidade do seu pecado, o mesmo personagem que só conseguia atravessar as ruas de Megalo Kastro _ por onde à noite São Minas, depois de descer do seu ícone, passeava a cavalo _ se alguém o carregasse, pois as via como terríveis rios de fogo.

De 1951 é a composição desse romance violentamente expressionista que é A última tentação. A descrição do esforço titânico do lado humano do Messias para alcançar o seu lado divino foi espantosamente mal compreendida, dando margem a toda sorte de ataques contra o autor, que acabara de produzir, no entanto, uma das mais impressionantes demonstrações literárias de amor ao Cristo de que se tem notícia. O final de A última tentação se resolve num crescendo de angústia quase insuportável, sem dúvida um dos finais de narrativa mais poderosos de nossa época. Talvez coubesse ao Cristo de Kazantzákis, o Cristo lutador que se eleva do carpinteiro fazedor de cruzes ao Deus crucificado, repetir a si próprio a proposição central de Ascese: “Não é Deus que nos salvará; somos nós que salvaremos Deus, combatendo, criando, transformando a matéria em espírito.” Curiosamente, o livro que se segue é O pobre de Assis, o mais lírico, o mais puro dos romances de Kazantzákis, como o seu próprio protagonista o foi. É nesse ano que o autor descobre a leucemia com que passará a conviver, ao lado dos velhos problemas cutâneos, provavelmente de origem psicossomática, de que recorrentemente sofreu, sem falar de alguns problemas oftalmológicos mais ou menos sérios.



Em 1956 inicia a redação das suas memórias, a magistral Carta a el Greco, na qual, como um soldado que entregasse o relatório de sua missão a um superior, ao seu general, ele se confessa ao seu grande conterrâneo do século XVI, em sua Toledo adotiva. É a mesma época em que Jules Dassin começa a rodar em Creta Aquele que deve morrer, versão de O Cristo recrucificado, que será lançado no Festival de Cannes de 1957. Indicado ao prêmio Nobel por Thomas Mann e Albert Schweitzer, Kazantzákis perde o prêmio, por um voto, para Albert Camus, de 44 anos de idade, trinta anos mais novo do que ele, após pesado lobby da diplomacia grega contra a outorga do prêmio. O próprio Camus, que no seu Le mythe de Sisyphe expôs algumas idéias próximas das de Kazantzákis, afirmaria mais tarde, em carta a Helena, ser Nikos, que faleceria poucas semanas após a entrega do prêmio, cem vezes mais merecedor da honraria do que ele. De fato, rótulos de herético ou de comunista acompanharam os últimos anos de suas relações com o país natal e a igreja ortodoxa, sem esquecer da Católica, que o condenou veementemente. Seu último romance, Os fratricidas, ou Os irmãos inimigos, publicado postumamente, descreve de maneira terrível a guerra civil grega após o fim da ocupação nazista, um conflito sangrento entre comunistas e nacionalistas. Houve quem falasse de um último Kazantzákis desesperado, por causa do final desse grande romance, mas nada nele se afasta da visão do mundo reconhecível nas obras anteriores do autor.



         Retornando, finalmente, ao tema de abertura desta palestra, vale a pena lembrar o que sobre a sua morte escreveu a sua sempre fiel Helena, depoimento, aliás, dos mais comoventes:

         “Nikos Kazantzákis pediu a Deus dez anos adicionais de vida, dez anos a mais para completar sua obra _ para dizer o que tinha de dizer e ‘esvaziar-se’. Queria que, quando a morte viesse, encontrasse somente um monte de ossos. Dez anos seriam suficientes, ou assim ele imaginava.

         Mas Kazantzákis não era do tipo que podia ‘esvaziar-se’ assim facilmente. Longe de se sentir velho e cansado aos setenta e quatro anos, considerava-se rejuvenescido mesmo após a sua última trágica aventura, a da vacinação. Dois grandes especialistas de Friburgo, o hematólogo Heilmeyer e o cirurgião Kraus endossavam essa opinião.

         Durante todo seu último mês, o professor Heilmeyer gritava triunfante depois de cada consulta: _ Estou lhe dizendo que este homem está mais do que sadio. Seu sangue está tão puro quanto o meu.

         _ Por que você corre desse jeito, Nikos? _ eu persistia em ralhar, temendo que ele escorregasse e fraturasse algum osso.

         _ Não se preocupe, Lenotska, tenho asas _ respondia. Sentia-se a confiança que tinha no físico e na alma que se recusavam em se transformar em pó.

         Por vezes suspirava: _Ah, se eu conseguisse ditar para você? _ E segurando um lápis, tentava escrever com a mão esquerda.

_ Qual é a pressa? Há alguém vindo atrás de você? O pior já passou. Em alguns dias você vai poder escrever tudo que seu coração desejar.

Virava então a cabeça, me olhava, e suspirando, dizia:  _ Tenho tanta coisa para dizer. Estou sendo atormentado novamente por três temas, três novos romances. Mas antes tenho de terminar a Carta a el Greco.

_ Você o fará, não se preocupe.

_ Quero fazer modificações no texto. Você pode me conseguir um lápis e umas folhas de papel? Vamos ver se conseguimos fazê-las.

Mas nosso trabalho a quatro mãos terminava em poucos minutos.

_ Não adianta. É impossível. Não sei ditar. Só sei pensar quando o lápis está entre meus dedos.

Ancestrais, pais, Creta, infância... Atenas, Creta, viagens, Sikelianos, Viena, Berlim, Prevelákis, Moscou...

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         Não. Ele não conseguiu terminar a Carta a el Greco a tempo. E foi incapaz de escrever um segundo esboço como era de seu costume. Conseguiu, no entanto, reescrever todo o primeiro capítulo e uma das partes finais: ‘Quando o germe da Odisséia frutificou em mim’, que enviou antes de sua morte para ser publicado no periódico Nea Estia. E conseguiu reler seu manuscrito, fazendo correções ou acréscimos, aqui e ali.

         Na solidão, agora, revivo o entardecer outonal que descia, descia suave, como uma criancinha, com o primeiro capítulo.

         _ Leia, Lenotska. Leia para que eu o ouça.

         ‘Guardo minhas ferramentas: visão, olfato, tato, paladar, audição, intelecto. A noite chegou, o trabalho do dia está feito. Como uma toupeira retorno à casa, a terra. Não porque esteja cansado. Mas o sol se pôs...’

         Não pude prosseguir. Um nó se formou na minha garganta. Esta fora a primeira vez em que Nikos havia falado da morte.

         _ Por que escreve como se estivesse pronto para a morte? _ gritei, em concreto desânimo. E a mim: por que hoje, logo hoje, aceitou ele a morte?

         _ Não se alarme, mulher, não vou morrer, _ respondeu sem a menor hesitação. _ Não dissemos que viveria outros dez anos? Preciso de mais dez anos! _ Sua voz baixara de tom agora. Estendendo a mão, tocou no meu joelho. _ Vamos, leia. Vamos ver o que escrevi.

A mim ele negou. Mas talvez soubesse. Porque nesta mesma noite lacrou o capítulo num envelope junto com uma carta para o seu amigo Pandélis Prevelákis: _ Helena não o pôde ler. Começou a chorar. Mas é bom para ela _ e para mim também _ que comece a se acostumar...

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         _ Não me julgue por maus atos, não me julgue pelo ponto de vista humano, _ um outro batalhador implorou-me certa vez. _ Julgue-me pelo de Deus, pelo objetivo secreto atrás de meus atos.

         Assim é como deveríamos julgar Kazantzákis. Não pelo fez ou se o que fez tinha ou não um valor sublime. Mas sim, pelo que queria fazer e se o que quis fazer tinha este valor para ele e para nós também.

         Eu, por mim, creio que sim. Durante meus trinta e três anos de convivência ao seu lado, não posso me recordar de jamais ter-me envergonhado por uma única má ação de sua parte. Era honesto, sem malícia, inocente, infinitamente doce para com os outros, feroz só consigo mesmo. Se se reatraía para a solidão, era somente porque sentia que os trabalhos dele exigidos eram penosos e seu tempo, curto.

         De olhos negros como breu, redondos na penumbra, as lágrimas brotando, costumava me dizer: _ tenho vontade de fazer o que diz Bergson: ir até a esquina e, estendendo as mãos, começar a implorar aos passantes: ‘Esmolas, irmãos! Quinze minutos de cada uma de suas vidas. Oh, por pouco tempo, o bastante para terminar meu trabalho. Depois, que venha Caronte.’

         E Caronte veio _ maldito seja! _ ceifando Nikos na primeira flor de sua juventude! Sim, caro leitor, não ria. Porque este era o instante para que tudo florescesse e frutificasse. Tudo o que iniciou, este homem que você tanto amou e que tanto o amou, seu Nikos Kazantzákis.”




         O féretro de Kazantzákis chegou a Atenas, por via terrestre, no dia 3 de novembro. No dia seguinte, de avião, foi transportado a Heráklion, a antiga Candia de sua infância e juventude, e exposto à veneração pública na catedral da cidade. No dia 5, uma enorme multidão acompanhou o corpo _ a quem o patriarca ortodoxo teve a indignidade de negar sepultura em terra consagrada, por causa das pretensas heresias do escritor e do homem _ ao Bastião Martinengo, nas grandes muralhas venezianas que dominam a cidade, defronte do mar de Creta. Jovens carregavam seus livros como se fossem ícones, e velhos capitães cretenses, com o lenço em torno da testa e o punhal na cintura _ homens que provavelmente nunca deviam ter lido seus livros dos quais pareciam ter saído _ carregaram seu caixão. Sobre seu túmulo se alça uma cruz de madeira com a única inscrição “Nikos Kazantzákis, 1883-1957”, mas em frente da cruz, numa pedra, pode-se ler seu epitáfio, tão parecido com o lema de Isabel D’Este e síntese do seu heroísmo trágico, quase um haicai, a forma japonesa que ele tanto amava:




Den elpizo tipota.
Den fovumai tipota.
Eimai eleftheros.


Não temo nada,
Não espero nada,
Sou livre!





                                                                             Alexei Bueno

                                                                          Outubro de 2007