terça-feira, 31 de outubro de 2017

DOIS POEMAS PARA CAMÕES




                  A ÚLTIMA VISÃO


É a hora de partir. Quão breve chega.
Tudo subitamente se amontoa...
Tejo, Mekong, Mondego, a musa grega,
O Rossio, os bordéis, Ceuta, Lisboa.

Naufrágios. Jogo. Oceano. A vista cega.
Bárbara. Dinamene. Uma coroa
Na areia. O mar. A praia que se entrega.
Os sinos de Sant’Ana. A praça em Goa.

Os versos. Prensas. Autos. Céus. Semblantes
De pedra. Os pais. Arruaças. Cães. Cadeias.
A espada sob o sol. Seios de amantes.

O Olimpo. O Letes. Náiades. Sereias.
Tudo passou em menos de uma hora.
Só Deus sabe o que principia agora.


                                                                                     24-9-2004

                                                                            (A árvore seca, 2006)



CAMÕES, ALÉM DO DESCONCERTO


Camões, nessas terras duras
De cafres, mouros, gentios,
Quantos mares, quantos rios,
Quantas terríveis lonjuras
Até as faces que são tuas.

Quantos meses, ou mais que eles,
Entre uma carta e outra carta,
Mundo vão que nos aparta,
Espumas que salgam, reles,
Nossas mãos só nisso imbeles.

A essência da solidão
Caminha em Goa, nas ruas,
Ao pensar que as mesmas luas
Banham de argênteo clarão
Olhos que cá e lá estão.

Mestre, não sei se é consolo,
Todos nós marchamos sós,
Mas é em nós que a tua voz
Vibra, não no coevo tolo
Que de Olisipo é hoje o solo.

De Ceuta, de Índia ou Macau
Nunca estiveste tão perto,
Tão sobre o salso deserto,
Sobre o torpe, sobre o mau,
Sobre o inconfiável vau

Quanto agora, em nosso peito,
Nosso pai, irmão e amigo,
Finda a Sorte, ido o Perigo,
Na Santa Cidade, eleito,
Para onde vai nosso preito.



                                                                                 No avião, 4-11-2008



                                                                        (As desaparições, 2009)

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