quarta-feira, 5 de setembro de 2018

OS 110 ANOS DE "SANGUE", DE DA COSTA E SILVA



Republico este texto, de 2008, agora para os 110 anos da estreia de Da Costa e Silva.



SANGUE: UM CENTENÁRIO




Na vida literária do Brasil, o período que engloba as duas primeiras décadas do século XX, mas que na verdade começou um pouco antes e se estendeu muito além dessa limitação cronológica, passou a ser vulgarmente conhecido entre nós como Pré-modernismo. Tal denominação, na historiografia literária brasileira, traduz um conceito muito mais histórico ou sociológico do que estético, e é um dos mais vagos, dos menos completamente definidos entre os muitos que acompanharam o desenrolar das escolas, da época colonial até a nossa contemporaneidade que assistiu à sua dissolução. Trata-se, na verdade, de um conceito negativo, que só se pode definir pela negação, referindo-se àquilo que, sem ser ainda modernista, já não seria mais exatamente parnasiano ou simbolista. Tasso da Silveira preferia usar a palavra sincretismo para definir o período, palavra talvez mais exata, mas que não alcançou a fortuna geral da outra. As duas primeiras décadas do século, de fato, assistiram a uma coexistência entre os frutos finais do Simbolismo e do Parnasianismo, o surgimento de seus epígonos e o pressentimento de novas tendências que estavam no ar. Se lembrarmos que Bilac morreu em plena atividade em 1918, deixando para publicação póstuma Tarde, um dos seus grandes livros, se lembrarmos que o admirável Alphonsus de Guimaraens estava no auge de sua força criadora, em seu quase exílio em Mariana, até a sua morte, em 1921, percebe-se o evidente acavalamento de estilos e propostas nesse período, que, grosso modo, se encerraria com a data icônica da Semana de Arte Moderna, em 1922, embora um Alberto de Oliveira, só como exemplo, continuasse vivo até 1937, um Augusto de Lima até 1934, assim como um Vicente de Carvalho até dois anos após a mencionada Semana. Uma das tentativas de delimitação cronológica de qual seria o período de vigência do Pré-modernismo situa-o, habilmente, entre dois eventos marcantes, a publicação de Os sertões em 1902, talvez o mais importante marco de uma virada de mentalidade quanto à visão que o povo brasileiro fazia de si próprio, e a já mencionada Semana de Arte Moderna de 1922. De maneira muito aproximativa, portanto, duas décadas, as duas primeiras do século passado, nas quais estrearam grande parte dos que depois seriam os nomes maiores do Modernismo, embora nesse momento se encaixassem perfeitamente na noção de sincretismo a que nos referimos, sincretismo que dominava a literatura do período, assim como o ecletismo dominava a arquitetura.

         Sangue, livro de estreia de da Costa e Silva, e sua obra mais emblemática, vem à luz em 1908, há exatamente um século, o título em grande letras vermelhas, como se repetiria no Eu quatro anos depois. Se mapearmos alguns dos títulos realmente importantes da poesia brasileira no período, e que de algum modo se relacionam com a obra em questão, faz-se necessário relembrar a publicação póstuma de Faróis, de Cruz e Sousa, em 1900 — livro que, sob vários aspectos, inaugura a poesia moderna no Brasil —, a de Kiriale, de Alphonsus de Guimaraens, em 1902, embora escrito uma década antes; a publicação em 1905, em Paris, por Nestor Victor, do sublime Últimos sonetos, de Cruz e Sousa; o surgimento, em 1908, dos dois livros de poesia mais marcantes do ano, ambos estreias, o já mencionado Sangue, do grande poeta piauiense, e Apoteoses, de Hermes Fontes; o inesperado e bombástico surgimento do Eu, de Augusto dos Anjos, em 1912, e, estendendo mais o período, a estreia de Manuel Bandeira com A cinza das horas, em 1917, o canto de cisne de Bilac com o já lembrado Tarde, em 1919, e o que pode ser tomado como o encerramento do período clássico do Simbolismo no Brasil, a publicação de Mistérios, do ex-padre José Severiano de Resende, em 1920, e a edição póstuma do magistral Pastoral aos crentes do Amor e da Morte, de Alphonsus de Guimaraens, em 1923.



         Ao contrário de Apoteoses, com que Hermes Fontes surgiu de fato apoteoticamente em 1908, livro sem dúvida ligado ao Parnasianismo até na teorização do seu prefácio, apesar de certas estranhezas nada ortodoxas para aquela escola, Sangue é, sem qualquer dúvida, um grande título da poesia simbolista brasileira. O “Cântico do Sangue”, que abre o livro, cumpre nele um papel arquitetônico semelhante ao que “Antífona” cumpre em Broquéis, embora nada se encontre, em Da Costa e Silva, da espécie de delírio verbal muito marcado naquele livro, e do qual Cruz e Sousa se afastará gradativamente. Por outro lado, é impossível não sentir o influxo de Cruz e Sousa no belíssimo “Turris Lucifera”, que poderia perfeitamente estar entre os Últimos sonetos, o que não é pouca coisa:


Torres altas dos nobres sentimentos,
Dos nobres sentimentos mais supremos,
Alturas imortais que apenas vemos
Com o auxílio dos grandes pensamentos;

Soberbos, colossais elevamentos
Onde não toca o extremo dos extremos,
E em cuja pompa nosso olhar perdemos
Na transcendência dos deslumbramentos;

Torres varando a névoa dos Espaços,
De onde distende bênçãos sobre os mundos
A Morte, abrindo a cruz dos longos braços...

Torres em que, na eterna trajetória,
O Ser dos sentimentos mais profundos
Ascende para Deus e para a Glória!...


         O influxo de Cruz e Sousa sobre Da Costa e Silva foi, no entanto, menos marcante e definidor do que sobre Augusto dos Anjos, cuja primeira feição vem muito diretamente do último livro do Poeta Negro, até que o decisivo encontro com Cesário Verde e o próprio gênio originalíssimo levassem-no a criar um Expressionismo avant la lettre entre nós.

         Sangue se compõe de 48 poemas, dos quais 36 são sonetos, proporção que deve aproximar-se da média da época. Se atentarmos para os sinais externos de escola, é marcante no livro o uso de maiúsculas, e ainda mais marcante o número de títulos em latim, o latim eclesiástico tão ao gosto dos simbolistas de todos os países: “In Tenebris”, “Consolatrix Afflictorum”, o já lembrado “Turris Lucifera”, “Mater”, “De Profundis”, “Lacrimae Semper”, “Ante Noctem”, “Post Mortem”, “Flumen Amoris”, “Soror Doloris”, “Virgo Imponderabilis”, “Turris Eburnea”, “Ignota Dea”, títulos que caracterizariam muito bem um provável leitor do Verlaine convertido ou de Huysmans.

         Como de hábito entre os simbolistas, no seu universalismo espiritualista, o que poderíamos chamar de cor local está quase ausente do livro, não fosse justamente pelo mais célebre poema de Da Costa e Silva, muito sabiamente posto após os dois sonetos de “Mater”, o também soneto “Saudade”:


                              SAUDADE

Saudade! Olhar de minha mãe rezando,
E o pranto lento deslizando em fio...
Saudade! Amor da minha terra... O rio
Cantigas de águas claras soluçando.

Noites de junho... O caburé com frio,
Ao luar, sobre o arvoredo, piando, piando...
E, ao vento, as folhas lívidas cantando
A saudade imortal de um sol de estio.

Saudade! Asa de dor do Pensamento!
Gemidos vãos de canaviais ao vento...    
As mortalhas de névoa sobre a serra...

Saudade! O Parnaíba - velho monge
As barbas brancas alongando... E, ao longe,
O mugido dos bois da minha terra...


         Sobre esse soneto, dos mais belos da poesia brasileira, escreveu Osvaldino Marques um trecho de uma incompreensão crítica sem lacunas, que é um índice da inutilidade de espiolhar-se a juba do leão quando se trata de arte:


         “Orações gerundiais amiúde. Rimas do mesmo campo lexicológico. O proverbial: “Saudade! Asa de dor do Pensamento!” parece-me um pouco demais écriture artiste na conceituação forçada de um concetto sobremaneira vago. Por fim, implico com a palavra “caburé”, pouco eufônica e, até certo ponto, um localismo, assim como a metáfora de “O Parnaíba — velho monge / As barbas brancas alongando...”


verdadeira aula, para além do pedantismo, de como não ler poesia. Bem mais valiosa é a opinião de Sânzio de Azevedo, em seu importante ensaio “Da Costa e Silva e o sincretismo”, ao afirmar, a respeito de “Saudade”, que


“Apesar de figurar no Panorama do Movimento Simbolista Brasileiro (1952), de Andrade Muricy, e em outras coletâneas do Simbolismo nacional, a nós não nos parece que seja típico da corrente de Cruz e Sousa. Para nós, ele se aproxima bem mais da dicção parnasiana, em sua vertente brasileira, pela forma trabalhada sem esconder o lirismo romântico.”


observação com a qual concordamos, ressalvando, no entanto, o caráter inegavelmente simbolista da expressão “velho monge” e da belíssima e caluniada “Asa de dor do Pensamento”.



         Muito se discutiu, de fato, a filiação simbolista geralmente atribuída a Sangue, na qual acreditamos totalmente. Além de inumeráveis características outras, seria difícil não classificar como simbolista um livro que contém um soneto intitulado “Josafat”, que termina com os dois seguintes versos:


Verlaine, Mallarmé, Cruz e Sousa, Anto Nobre
Rezam juntos por mim num profano Eucológio.


assim como um soneto tal qual “Ódio bendito”, quase um pendant do “Ódio sagrado” de Cruz e Sousa. Ou um verso tão característico como este, que nos faz pensar em Antônio Nobre ou em Alphonsus de Guimaraens, e que abre a “Canção da Morte”: “Tenho uma noiva: é Dona Morte”. Digno de nota, sob esse mesmo aspecto, é a presença no livro de um estranho caligrama, “Visão de um louco”, que reproduz graficamente o círculo da lua, forma a que o autor retornaria duas vezes em Zodíaco. Se tais extravagâncias gráficas não são de modo algum privilégio do Simbolismo, antes velhas como o mundo e encontráveis mesmo num livro romântico como os Cantos religiosos, de Fagundes Varela, é fato inegável o interesse dos simbolistas por certas experiências visuais, inclusive no aspecto tipográfico dos seus livros, bastando lembrar, a esse respeito, o Rosa Mística, de Júlio Afrânio, o futuro Afrânio Peixoto, que o renegaria, impresso em quatro cores, em 1900, na cidade de Lepizig.

         No livro seguinte de Da Costa e Silva, no entanto, Zodíaco, de 1917, assim como em Pandora, de 1919, fortes características parnasianas se juntam a esse substrato simbolista, embora no primeiro o poeta utilize fartamente um verso polimétrico que nada tem a ver com a escola, verso onde há um provável influxo de Verhaeren, autor de uma das epígrafes do livro e poeta ao qual Da Costa e Silva dedicaria um poema, publicado numa plaquette em 1917. Zodíaco é um livro de impressionante virtuosismo formal. Seria mais do que interessante comparar um soneto fortemente aliterado como “O sapo”, deste livro, com outro de características temáticas e formais muito próximas, como “O porco”, dos “Painéis zoológicos” do já lembrado Mistérios, de José Severiano de Resende — esse um simbolista insuspeito —, para demonstrar como a classificação por escolas é mais do que melindrosa nesse período. Detalhe curioso é a forte presença da figura materna em toda a obra de Da Costa e Silva, como em poucos outros poetas brasileiros é possível constatar.

         O último livro de Da Costa e Silva, Verônica, de 1927, talvez seja, na nossa opinião, o ponto mais alto de sua obra. Trata-se de um livro severamente elegíaco, todo ele uma reflexão sobre o destino, a vida e a morte, com alguns sonetos magistrais e poemas admiráveis como “Diálogo interior” ou “Litania das horas mortas”, esse uma indubitável reaproximação do Simbolismo. Alguns dos últimos poemas de Da Costa e Silva, que nos primeiros anos da década de 1930 entrou num gradativo alheamento psicológico, até o silêncio, como Hölderlin, apontam para uma clara aproximação da estética modernista. “Despertar no Amazonas”, “Carnaval”, “Refrão do trem noturno”, “O carrossel fantasma” parecem indicar os pródromos de uma nova e poderosa fase do poeta. A verdade, por mais inútil que sejam essas reflexões sobre possibilidades não cumpridas, é que não podemos saber qual teria sido o panorama geral da poesia brasileira depois do Modernismo caso não houvessem acontecido as mortes precoces de Augusto dos Anjos e de Raul de Leoni, assim como o silêncio de Da Costa e Silva.

         Mas é Sangue, de um modo ou de outro, que permanece como o seu livro mais icônico, entre outros motivos, talvez, por conter o irresistível “Saudade”, pela força do seu título, por ter sido a estreia de um dos maiores poetas do Brasil naquele momento. Por tudo isso é um importante centenário esse que evocamos, neste ano tão rico em efemérides para a literatura brasileira.



                                                                                                   Alexei Bueno



4 comentários:

  1. Prezado Poeta Alexei Bueno

    Tudo bem? Meu nome é Ranieri Ribas, do Piauí, terra de Da Costa e Silva. Acompanho suas publicações há uns vinte anos. Certa feita, quando eu morava no Rio, em Botafogo, fui a um bar tomar uma cerveja com um amigo sociólogo. Ele me pediu para que eu descrevesse o quadro da poesia brasileira contemporânea (em 2007). Comecei a explicar e falei da sua posição corajosa diante da hegemonia concretista. Imediatamente, um cara que estava sentado ao nosso lado, cujo nome não me lembro mais, aproximou-se de mim, disse que estava ouvindo a descrição e pediu pra sentar com a gente. Respondi que sim, poderia sentar-se e falar sobre a poesia brasileira contemporânea. O cara começou a contar uma estória. Disse que era seu amigo e que sua primeira publicação na juventude foi feita numa edição de duas capas com ele. Você e ele dividiram a publicação por conta dos custos. Metade do livro continha poemas seus, outra metade poemas dele. Depois fui investigar no google e não encontrei evidências.
    Depois disso eu resolvi escrever um artigo sobre a "crise da poesia brasileira contemporânea".

    é verdade isso?

    Saudações cordiais!
    Ranieri

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    1. Meu caro Ranieri,

      Muito lhe agradeço o interesse. Essa história não procede, publiquei meu primeiro livro em 1979, aos 16 anos, obra imatura e por conta do autor, obviamente, mas nada semelhante ao que lhe contaram.

      Abração,

      Alexei

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  2. Prezado Alexei,
    A Editora Positivo tem interesse em reproduzi uma foto e poema seu.
    Poderia por favor responder para o e-mail mayaray@positivo.com.br para que possamos tratar sobre a autorização?
    Muito obrigada,
    Atenciosamente,
    Mayara

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  3. Caro Alexei,
    A algum tempo soube que você conseguiu um material sobre a família Freitas, para ser mais exato, sobre o Alcides Freitas. Sou historiador, residente aqui no Piauí, pesquisador da família Freitas, inclusive escrevi minha dissertação sobre a escritora Amélia de Freitas Bevilaqua. Por favor, poderia entrar em contato? Meu e-mail: ninocessar992@gmail.com

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