segunda-feira, 9 de julho de 2018

DRUMMOND E A FRANÇA



Como na última postagem só me referi aos óculos da estátua do poeta, nesta - às vésperas do imperdível jogo França x Bélgica - falo do próprio. Este pequeno texto foi lido na saudosa Livraria Leonardo da Vinci, no dia do seu aniversário de 109 anos.


DRUMMOND E A FRANÇA


            Para analisar as relações de um poeta, de um intelectual, de um escritor com outro país, outra cultura, outra literatura, três caminhos se revelam incontornáveis: o do leitor, com as possíveis influências daí advindas, o que só confissões memorialísticas ou epistolares podem revelar; as referências àquela nacionalidade dispersas pela sua obra, e o exercício da tradução dessa literatura, caso ela haja existido. No caso de Carlos Drummond de Andrade e a França, os três caminhos existem, e aqui deles falaremos muito brevemente.

         No século XIX, o influxo cultural e literário da França sobre o Brasil, como todos sabemos, era absoluto, vindo em segundo lugar o de Portugal, e muito mais longinquamente o inglês — através de Byron, antes de tudo — e o alemão, para uns poucos dos nossos grandes românticos que conheciam a língua, como Gonçalves Dias. Tal influxo seguiu fielmente o desenrolar das escolas, num Parnasianismo perfeitamente francês e num Simbolismo da mesmíssima origem, e se estendeu até o Modernismo, bastando, nesse caso, recordar a avassaladora influência de um suíço-francês como Blaise Cendrars sobre Oswald de Andrade.

         Essa constante, que só começou a decrescer após a Segunda Guerra, reflete-se mesmo nos poetas brasileiros de maior ou menor importância que escreveram alguma obra ou mesmo a obra inteira em francês, como o grande Alphonsus de Guimaraens de Pauvre Lyre até Pethion de Villar, ou seja, o baiano Egas Moniz Barreto de Aragão; Jacques d’Avray, o gaúcho José de Freitas Vale; Aloísio de Castro, Sérgio Milliet ou Guilherme de Almeida, autor, em 1916, das peças Mon couer balance e Leur âme, ambas em parceria com o já lembrado Oswald de Andrade.

         A primeira referência de Drummond à França aparece em Alguma poesia, seu livro de estreia, de 1930, no poema, do qual citamos o início e o final, justamente intitulado:


       EUROPA FRANÇA E BAHIA

Meus olhos brasileiros sonhando exotismos.
Paris. A torre Eiffel alastrada de antenas como um caranguejo.
Os cais bolorentos de livros judeus
e a água suja do Sena escorrendo sabedoria.

O pulo da Mancha num segundo,
Meus olhos espiam olhos ingleses vigilantes nas docas.
Tarifas bancos fábricas trustes craques.
Milhões de dorsos agachados em colônias longínquas formam um tapete para Sua Graciosa Majestade Britânica pisar.
E a lua de Londres como um remorso.

.........................................................................................

Chega!
Meus olhos brasileiros se fecham saudosos.
Como era mesmo a “Canção do Exílio”?
Eu tão esquecido de minha terra...
Ai terra que tem palmeiras
onde canta o sabiá!

                                                                           (Alguma poesia, 1930)

Como vemos, um relance imaginário sobre o mítico Velho Mundo, por um poeta sedentário que nunca o conheceria, no qual sentimos algo do Apollinaire de “Le Pont Mirabeau”, na referência à “água suja do  Sena”, terminando na infalível, entre os nossos modernistas de primeira hora, rememoração ou paródia da “Canção do Exílio”.

Nos livros seguintes, Brejo das almas, Sentimento do mundo e José, não se encontra qualquer referência à França, que reaparecerá, de forma muito sutil, em A rosa do povo, de 1945, o grande livro do Carlos Drummond de Andrade social e político, antes de se desencantar com as ideologias, num dos seus mais admiráveis poemas, “Com o russo em Berlim”, o mais belo poema de guerra da nossa literatura. Nele encontramos uma referência a Paris e outra às Ardenas, que não podemos omitir, tendo em vista a importância da batalha lá travada, apesar de as Ardenas não se limitarem ao território francês, fazendo parte igualmente da Bélgica e do Luxemburgo. Por tudo isso, vou dar-me ao luxo de ler integralmente esta obra-prima, convicto de que um dos grandes choques morais para todos os intelectuais não fascistas do Ocidente foi a queda da França, em 1940, como bem descreve, num texto memorável, George Bernanos, que entre nós se encontrava naquele momento trágico:


          COM O RUSSO EM BERLIM

Esperei (tanta espera), mas agora,
nem cansaço nem dor. Estou tranquilo,
Um dia chegarei, ponta de lança,
       com o russo em Berlim.

O tempo que esperei não foi em vão.
Na rua, no telhado. Espera em casa.
No curral, na oficina, um dia entrar
       com o russo em Berlim.

Minha boca fechada se crispava.
Ai tempo de ódio e mãos descompassadas.
Como lutar, sem armas, penetrando
       com o russo em Berlim?

Só palavras a dar, só pensamentos
ou nem isso: calados num café,
graves, lendo o jornal. Oh, tão melhor
       com o russo em Berlim.

Pois também a palavra era proibida.
As bocas não diziam. Só os olhos
no retrato, no mapa. Só os olhos
       com o russo em Berlim.

Eu esperei com esperança fria,
calei meu sentimento e ele ressurge
pisado de cavalos e de rádios
       com o russo em Berlim.

Eu esperei na China e em todo canto,
em Paris, em Tobruc e nas Ardenas
para chegar, de um ponto em Stalingrado,
       com o russo em Berlim.

Cidades que perdi, horas queimando
na pele e na visão: meus homens mortos,
colheita devastada, que ressurge
       com o russo em Berlim.

O campo, o campo, sobretudo o campo
espalhado no mundo: prisioneiros
entre cordas e moscas; desfazendo-se
       com o russo em Berlim.

Nas camadas marítimas, os peixes
me devorando; e a carga se perdendo,
a carga mais preciosa: para entrar
       com o russo em Berlim.

Essa batalha no ar, que me traspassa
(mas estou no cinema, e tão pequeno
e volto triste à casa; por que não
       com o russo em Berlim?).

Muitos de mim saíram pelo mar.
Em mim o que é melhor está lutando.
Possa também chegar, recompensado,
       com o russo em Berlim.

Mas que não pare aí. Não chega o termo.
Um vento varre o mundo, varre a vida.
Este vento que passa, irretratável,
       com o russo em Berlim.

Olha a esperança à frente dos exércitos,
olha a certeza. Nunca assim tão forte.
Nós que tanto esperamos, nós a temos
       com o russo em Berlim.

Uma cidade existe poderosa
a conquistar. E não cairá tão cedo.
Colar de chamas forma-se a enlaçá-la,
       com o russo em Berlim.

Uma cidade atroz, ventre metálico
pernas de escravos, boca de negócio,
ajuntamento estúpido, já treme
       com o russo em Berlim.

Esta cidade oculta em mil cidades,
trabalhadores do mundo, reuni-vos
para esmagá-la, vós que penetrais
       com o russo em Berlim.


                                                       ( A rosa do povo, 1945)


Em 1951, já extinto o otimismo político da época da Guerra, Drummond abre aquele que talvez seja o maior de seus livros, Claro enigma, com uma epígrafe de Paul Valéry, que explica à perfeição o seu estado de espírito e a virada temática que acontecia em sua obra poética: “Les évenements m’ennuient”, ou seja, “os acontecimentos me entendiam”, ou, outra tradução possível, “me aborrecem”.

         Na mesma época, por instâncias do conhecido “mercador de livros” Carlos Ribeiro, da Livraria São José, o poeta escrevia o delicioso “Soneto da buquinagem”, neologismo do francês, onde encontramos as palavras bouquin ou bouquiniste, de etimologia insegura. É de se notar, no último verso, a referência a François Villon:


       SONETO DA BUQUINAGEM

Buquinemos, amiga, neste sebo.
A vela, ao se apagar, é sebo apenas,
e quero a meia-luz. Amo as serenas
angras do mar dos livros, onde bebo

— álcool mais absoluto — alheias penas
consoladas na estrofe, e calmo, e gebo,
tiro da baixa estante sete avenas
em sete obras que pago e que recebo.

Amiga, buquinemos, pois é morta
Inês de antigos sonhos, e conforta
no tempo de papel tramar de novo

nosso papel, velino, e nosso povo
é Lucrécio e Villon, velhos autores,
aos novos poetas muito superiores.


                                                     (Viola de bolso, 1952)


Doze anos mais tarde, em 1964, o escritor carioca Luís Martins — já há muito vivendo em São Paulo, casado com Tarsila do Amaral — publicou o fundamental Noturno da Lapa, ele que já era aquele que mais escrevera sobre o célebre bairro boêmio, algo como o Pigalle do Rio de Janeiro, com o romance Lapa, de 1936 — romance fraco, apreendido e queimado pela polícia do Estado Novo — assim como o romance A terra como tudo, de 1937, este bem melhor e muito mais centrado no bairro, embora não o evocando no título. Para a sua terceira obra sobre o mesmo tema escreveu Drummond, seu amigo de velha data, esse maravilhoso triolé:


              L. M.

Villon, Verlaine e Luís
encontraram-se na Lapa.
A vida — essa meretriz —
tanto beija como escapa.
Villon, Verlaine e Luís
trautearam suas canções
com riso, lágrima e uísque,
e entre tantas emoções
deixaram na noite escura
— Villon, Verlaine e Luís —
a luz mais terna, mais pura.


                                                     (Noturno da Lapa, 1964)


         Como vemos, para se referir ao bairro de prostituição, bebedeira e malandragem que era o ponto maior do mapa do Distrito Federal da nação, Drummond relembra ainda uma vez o assassino, ladrão e poeta genial François Villon, agora ao lado do genial poeta e alcoólatra contumaz Paul Verlaine, ambos franceses, e dos maiores.

         Se até aqui nos limitamos a recensear perfunctoriamente as referências drummondianas à França, agora é preciso relembrar o tradutor, “tradutor Deus sabe como”, de acordo com a auto-ironia algo machadiana com que o poeta sempre se referiu a si próprio. Seu trabalho de tradutor do francês, no entanto, não é pequeno nem esporádico. Para começarmos pela prosa, traduziu ele, em 1943, Thérèse Desqueyroux, de François Mauriac, com o título português Uma gota de veneno. De 1947 é a tradução de Les liaisons dangereuses, de Chordelos de Laclos, ano no qual, aliás, fato inacreditável, foram lançadas no Brasil outras três traduções do mesmo romance epistolar. Em 1954 Drummond traduz Les paysans, de Balzac, e, dois anos depois, Albertine disparue, ou La fugitive, de Marcel Proust. Em 1960, afastando-se completamente do campo da literatura, o poeta traduz, por encomenda da Biblioteca Nacional, o álbum Oiseaux-mouches orthorynques du Brésil, de Jean Théodore Descortilz. Em 1962, finalmente, traduz Drummond duas peças do francês, L’oiseau bleu, do belga Maurice Maeterlinck, e Les fourberies de Scapin, de Molière.

         Em relação à poesia, Drummond, que chegou a imaginar, no início dos anos de 1950, um livro de poemas traduzidos com o título de Poesia errante — livro que não se efetivou, como, por exemplo, os Poemas traduzidos de Manuel Bandeira — verteu para o português poetas franceses tão diversos como o grande e já lembrado Apollinaire, Charles Vildrac, Andrè Verdet ou Paul Éluard.

         Se já falamos das referências à França em sua poesia e ao seu trabalho de tradutor de escritores franceses ou de expressão francesa, resta-nos comentar o que ficou da França na memória do poeta, especialmente aquela do seu período de formação. Se Drummond não escreveu memórias no exato sentido da palavra, como o seu grande amigo e prosador magistral Pedro Nava, ela as escreveu em verso, no muito vasto conjunto que intitulou Boitempo. Ali, como não poderia deixar de ser, a França e a Europa aparecem, como entidades icônicas e quase inalcançáveis na sua infância de menino provinciano, como vemos no poema:


                       HERÓI

Regressa da Europa Doutor Oliveira.
É dia de festa na cidade inteira.

Doutor Oliveira fez longa viagem.
Maior, mais brilhante ficou sua imagem.

Viajou de cavalo, de trem, de navio.
Foi bravo, foi forte, venceu desafio.

Falou língua estranja, que não percebemos.
Ergueu nosso nome a pontos extremos.

Conversou doutores de barbas sorbônicas
e viu catedrais, joias arquitetônicas.

Papou iguarias jamais igualadas
nas jantas mais finas: consommés, saladas,

ovas de esturjão, e pratos mil flambantes,
que aqui falecemos sem conhecer antes.

Praticou mulheres das mais perigosas,
ofertou-lhes mimos, madrigais e rosas.

Nenhuma o prendeu entre grades de seda.
Volta o nosso amigo, livre, de alma leda.

Tudo há de contar-nos à luz do lampião,
para nosso pasmo e nossa ilustração.

Depressa, cavalos e arreios de prata,
que vai esperá-lo o povo bom, a nata.

Da cidade às portas, como triunfador,
eis chega Oliveira, preclaro doutor.

Ginetes aos centos correm a saudá-lo.
Foguetes, discursos e até o abalo

de tiros festivos no azul — eta nós!
dados por Janjão e por Tatau Queirós.

Pois quem destes matos foi até Paris
honrou nossa terra, deu-lhe mais verniz.

E assim, ao apear, desembarca na História
Doutor Oliveira, para nossa glória.


                                                (Boitempo II, 1973)


Mais diretamente percebemos algo do espírito francês na referência ao originalíssimo aventureiro que foi Émile Rouède, pintor de importância para a iconografia mineira da época em que andou por aquele Estado:

                     O FRANCÊS

Emílio Rouède, esse francês errante
primeiro terrorista brasileiro:
dinamitou o túnel em Rodeio
para depor – audácia – Floriano.

Emílio? Dinamitou coisa nenhuma.
Sua dinamite era verbal.
Mas por via das dúvidas recolhe-se
à doçura dos cerros de Ouro Preto
aonde não chega o braço floriano.

E começa a pintar. E pinta pinta
paisagem mineira sem cessar.
Acabando a paisagem disponível
(ou o enerva a natura pachorrenta)
vou ali – diz Emílio – ao Mato Dentro
fundar um ginásio e dar-lhe nome
de esquecido poeta destas brenhas.

Santa Rita Durão, outro agitado
que nem Emílio, volta às Minas pátrias.
É colégio, que bom. Mas dura pouco
e lá se vai Emílio, hoje fotógrafo,
rumo a diamantes improváveis
da longe Diamantina.
Os antigos referem: Por aqui
Certo francês alegre andou um dia.

E lá se vai Emílio, rumo a nada.

                                                (Boitempo II, 1973)

Ainda mais diretamente relacionado com a formação francesa de Carlos Drummond de Andrade é o seguinte poema, bastante divertido, também de Boitempo:


  CULTURA FRANCESA

Com Mestre Emílio aprendi
esse pouco de francês
que deu para ler Jarry.

Murilo, diabo na aula,
tinha gestos impossíveis
que nem macaco na jaula.

Mestre Emílio, tão severo
não via no último banco
o aluno de moral-zero.

Os verbos irregulares
saltavam do meu Halbout,
perdiam-se pelos ares.

Nunca mais os encontrei...
Talvez Brigitte Bardot
me ensinasse o que não sei.


                                                                    (Boitempo II, 1973)


O “meu Halbout” do poema se refere ao professor de francês José Francisco Halbout, autor de uma Gramática teórica e prática da língua francesa que foi livro didático de uso geral no Brasil nas duas últimas décadas do século XIX até meados do século seguinte.

O mesmo ambiente de estudo linguístico reaparece no seguinte poema:


            AULA DE FRANCÊS

Cette Hélène qui trouble et l’Europe et l’Asie,
Mas o professor é distraído,
não vê que a classe inteira se aliena
das severas belezas de Racine.
Cochicham, trocam bilhetes e risadas.
Este desenha a eterna moça nua
Que em algum país existe, e nunca viu.
Outro some debaixo da carteira.
Os bárbaros. Será que vale a pena                                   
ofertar o sublime a estes selvagens?
O professor Arduíno Bolívar
Fecha a cara, abre o livro.
Ele não os despreza. Ama-os até.
Podem fazer o que quiserem.
Ele navega só, em mar antigo,
A doce navegação de estar sozinho.
Tine a campainha. Acabou a viagem, no fragor
de carteiras e pés.
O professor regressa rígido
sistema métrico decimal das ruas de Belo Horizonte.

                                                                                  (Boitempo II, 1973)


O alexandrino que abre o poema é um verso célebre da Iphigénie en Aulide, de Racine.

Finalmente, para encerrarmos esta nossa viagem ao passado de um poeta e de suas relações com um país e uma cultura, leremos este curto poema que se refere à visita do Conde D’Eu ao Brasil em 1921, acompanhando a trasladação dos restos mortais de seus sogros D. Pedro II e Dona Teresa Cristina. O príncipe morreria pouco mais tarde, em 1922, no navio que o trazia para as festas do Centenário da Independência. É um poema sobre o fluir inexorável do tempo, sobre o fim de uma era, e o julgamos, por isso mesmo, um fim bastante exato para esta nossa despretensiosa fala a respeito de Carlos Drummond de Andrade e a França.


              O PASSADO PRESENTE

Vejo o Conde D’Eu no Grande Hotel.
Fala francês com Dr. Rodolfo Jacob.
O fantasma da Monarquia
é o terceiro, invisível, interlocutor.
Lá fora o sol encandece, republicano.
Ah, nunca pensei que o passado existisse
assim tocável, a mexer-se.
Existe. E fala baixo. Daqui a pouco
toma o trem da Central, rumo ao silêncio.


                                                   (Boitempo II, 1973)


           
                                                                                               Alexei Bueno

                                                                                              31-10-2011




2 comentários:

  1. Bela aula, prezado! Tenho esperança que você nos traga Villon em português. Ou v já fez e eu desconheço?

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  2. Grande Drummond! Grande França! Grande Alexei que juntou os dois em mais um brilhante ensaio!

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