quarta-feira, 20 de junho de 2018

OS ÓCULOS DO DRUMMOND E A CEGUEIRA DE UM POVO


OS ÓCULOS DO DRUMMOND E A CEGUEIRA DE UM POVO

Já não é de hoje que os monumentos públicos do Rio de Janeiro têm sido pilhados, mutilados, ou praticamente demolidos, processo que parece ter-se acelerado com a falência e a espantosa degradação em que mergulhou a cidade depois de algumas mais do que funestas administrações. Monumentos públicos, do século XVIII ao XX, têm sido vitimados de maneira vergonhosa, para o furto de elementos de bronze e até mesmo de ferro, mas, curiosamente, o único deles que consegue alguma repercussão é a estátua de Carlos Drummond de Andrade, no Posto 6 da Praia de Copacabana, quando lhe furtam os óculos, o que se transformou numa espécie de esporte. O carioca, na sua ignorância sem lacunas, desconhece completamente a pilhagem e a vandalização de obras do Mestre Valentim, de Rodolfo Bernardelli, Eduardo de Sá, José Otávio Correia Lima, Modestino Kanto, etc. etc., pois a lista é gigantesca. Apenas a bela estátua realista do poeta, obra do escultor mineiro Leo Santana, inaugurada em 2002, ano do seu centenário, aparece na mídia e adentra a aparentemente muito estreita consciência dos moradores desta cidade.

Na ocasião da virada do milênio, ou seja, há quase duas décadas, denunciamos à imprensa, que publicou matéria de página inteira, a verdadeira tragédia do Passeio Público. Além de ter tido não poucos bustos roubados e nunca recuperados e as pontas lanciformes da grade sempre serradas, a balaustrada que ladeava o chafariz de dupla face do Mestre Valentim teve a sua cobertura em gnaisse demolida a marretadas, para que roubassem os balaústres de ferro fundido que a sustentavam. Em vez de restaurá-la tal qual, o IPHAN a substitui, com a exceção de dois trechos mínimos, por uma ridícula grade moderna, que, sem nenhuma função, aliás, foi posta defronte do Chafariz do Menino, interferindo na sua visão e dificultando o acesso do público. Recentemente parte do pouco que restava da balaustrada foi novamente demolido a marreta, e o anjinho com a cartela “Sou útil inda brincando”, um dos símbolos — um dos ex-libris, com diriam os portugueses — do Rio de Janeiro, despareceu de lá há mais de dois anos, assim com os aros de bronze do tonel no qual despejava água. Antes disso já tinha tido as asas e os braços serrados, tal como os jacarés do Chafariz dos Jacarés, a face posterior do Chafariz do Menino, as suas caudas. Ora, o Passeio Público, que data de 1783, o primeiro jardim público do país, nos parece um tanto mais importante do que os óculos do Drummond, mas só desses se fala.


Bem em frente ao Passeio Público ergue-se o Monumento ao Marechal Deodoro, onde repousam os restos mortais do fundador da República e de sua esposa, obra de Modestino Kanto, de 1937. Com 23 metros de altura e um peso de 850 toneladas, o imenso pedestal, em estilo Art Déco sustenta a estátua equestre do herói, que ergue o seu quepe, reproduzindo o gesto do 15 de novembro de 1889. Quatro grupos escultóricos, em cada face do pedestal, apresentam outros vários próceres republicanos, desatacando-se, num espaço entre eles, em posição oposta à figura da República, a estátua de D. Rosa Maria Paulina da Fonseca, a matriarca alagoana mãe de Deodoro e de outros grandes militares. Tal estátua, com o peso de meia tonelada, foi furtada na década de 2010, e em seguida milagrosamente resgatada pela polícia, junto ao Museu de Arte Moderna, enquanto era serrada pelos ladrões. Do ano passado até agora, arrancaram do pedestal do monumento metade dos retratos em baixo-relevo de alguns dos fundadores da República que o ornavam. Como quase indubitavelmente não existem os moldes originais, eles estão perdidos definitivamente.



         Em plena Cinelândia ergue-se uma das maravilhas da escultura pública carioca, o monumento a Floriano Peixoto, de Eduardo de Sá, inaugurado em 1910. Nas suas quatro bases, entre algumas inscrições positivistas muito características, vemos quatro grupos escultóricos notabilíssimos, representando quatro grandes poemas épicos brasileiros, que, por sua vez, representam eles próprios quatro momentos da história pátria, ou seja: na frente, à esquerda, o Caramuru, de Santa Rita Durão, e, à direita, A Cachoeira de Paulo Afonso, de Castro Alves. Na parte posterior, à esquerda, “Y-juca-pirama”, de Gonçalves Dias, e, à direita, Anchieta, ou O Evangelho nas Selvas, de Fagundes Varela. Todos os quatro grupos estão entre o que de melhor produziu a escultura brasileira na primeira década do século XX. Aquele que representa A Cachoeira de Paulo Afonso, mostrando os escravos Lucas e Maria na canoa que os conduz ao precipício e à morte, foi derrubado de sua base no Carnaval de 2010, por foliões do Cordão da Bola Preta que o escalaram. Reposto mais de dois anos depois, o remo partido que Lucas empunhava desapareceu, e ainda se aguarda que seja refeito, o que seguramente não acontecerá, já que todos só pensam nos óculos do Drummond...



Continuando este inventário lamentável, na Praça Paris deparamo-nos com outro belíssimo monumento, o do Almirante Barroso, da autoria de José Otávio Correia Lima, inaugurado em 19 de novembro de 1909. Este imponente monumento foi originalmente erigido na Praça Luís de Camões, na Glória, mas com as obras do Metrô foi transferido para a Praça Paris, onde se encontra desde então. Sobre um pedestal em granito, o vencedor da Batalha Naval do Riachuelo ergue o quepe com a mão direita, na exata posição em que o pintou Vítor Meireles, a bordo da fragata Amazonas, em seu quadro célebre, de 1872. Nas laterais do pedestal, sobre duas proas, erguem-se duas figuras aladas, uma feminina, outra masculina, sobre guirlandas de bronze, relevos e medalhões representado outros heróis da célebre batalha, esses não poucas vezes repostos pela Marinha após serem furtados do monumento, que encerra os retos mortais do almirante. Tal reposição já ocorreu um número absurdo de vezes, mas o furto continua. A estátua do Drummond tem câmera de segurança ao lado, por causa dos seus preciosos óculos, mas o acervo inapreciável do Centro e arredores não merece tal luxo.



Finalmente, para fechar este texto, transferimo-nos ao logradouro mais histórico do país, a Praça XV de Novembro, no centro da qual se levanta a estátua equestre do General Osório, de Rodolfo Bernardelli, inaugurada em 12 de novembro de 1894, com monumental festa e cavalhada registrada em fotografias. Tratava-se de um mausoléu composto por um grande pedestal revestido de granito de Baveno, onde estão fixados dois altos-relevos e a estátua equestre de Osório, com a espada em punho. Trata-se, indubitavelmente, de uma das mais belas estátuas equestres do país, senão a mais bela. Foi fundida na França, com bronze de canhões apresados na Guerra do Paraguai, valor simbólico que nem uma refundição bem conduzida pode recuperar. Tão belo quanto ela era o seu notável gradil, com elementos bélicos como canhões, balas de canhão e lanças, entre ramos de louro, elementos estes que já foram furtados e repostos diversas vezes, e que no momento atual despareceram de todo. Um medalhão frontal, dentro de uma guirlanda, trazia a inscrição: “A Osório o povo, 1894”, enquanto o medalhão posterior dizia: “Nasceu em 10 de maio de 1808 na ex-Província do Rio Grande do Sul”. Em 1993 tiveram a péssima ideia de exumar os restos mortais do grande herói nacional deste monumento extraordinário, transferindo-os então para um outro, de duvidoso gosto, em Osório, sua terra natal, no Rio Grande do Sul. No momento em que são escritas estas linhas, não sobra in situ um único elemento do gradil, das guirlandas e das inscrições anterior e posterior, que elas emolduravam, o mesmo que ocorreu com algumas pequenas placas comemorativas, sem falar da espada, que também foi extraída do punho do herói, tudo arrancado a “Alicate Lucas”, sistematicamente, semanalmente, até não sobrar mais nada do que pudesse ser vendido por alguma ninharia, com a exceção de alguns elementos, “testemunhas” do original, que a Prefeitura parece ter recolhido. 







Durante essa processo bárbaro, que acompanhamos semana a semana, não saiu uma única nota na imprensa, ninguém percebeu a necessidade óbvia de uma guarda noturna permanente em logradouro de tal importância, e, quanto à instalação de uma câmera, nem pensar. Durante esse período alguns óculos do Drummond seguramente foram furtados e repostos, com repercussão tal como se do Auriga de Delfos, da Vênus de Milo ou da Vitória de Samotrácia se tratasse.

         Enfim, o interesse do povo carioca pelos seus monumentos — cujas mutilações, insistimos, são geralmente irreversíveis pela ausência dos moldes originais — parece acompanhar em brilhantismo o seu impressionante desempenho quando das escolhas eleitorais...



                                                                                          Alexei Bueno

                                                                                            12-6-2018


P. S. - Agradecemos a Vera Dias, abnegada lutadora pela causa dos monumentos públicos do Rio, pelo uso de duas imagens nesta postagem, e à Rede Globo de Televisão por uma.


4 comentários:

  1. De fato, Alexei, os óculos - ai os óculos, é que destacam o "carinho" do caroca e... a agilidade de reposição. O jacaré, a espada, os brazões e as armas assinaladas não parecem merecer.
    Haverá uma "brigada" de guarda aos óculos, uma batalhão, quem sabe? O resto é o "chiclete" do descaso, material ótimo para o busto de nossos incultos dirigentes.
    Um dia, o sol raiará. Vamos continuar nossa briga com eles
    Helio Brasil !

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  2. O 'animus' é o mesmo. O óculos de Drummond foram vedetizados. Essa relação de obras de arte relacionada por Alexei é impressionante. Mas podemos incluir nesse fenômeno o roubo de tampas de bueiros, fios da rede elétrica por causa do cobre. Como casos como esses não ocorrem na Noruega. Concluo que é tudo consequência de nosso modelo de sociedade dividida em favelados e ricos.

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  3. Prezado Alexei,
    Eu moro em São Paulo desde 1976. Na última vez em que estive no Rio, em 2014, fui ao Campo de Santana rever o Monumento a Benjamin Constant (aonde eu brincava quando criança), e vi que também nele faltavam alguns adornos de bronze.
    E por muito pouco eu não fui assaltado lá dentro do parque.
    Acho que não foram só os óculos do Drummond ou estes adornos que eles estão nos roubando, eles também nos roubaram as praças, as ruas, as praias, eles estão nos roubando a cidade toda.
    Abraço,
    João Renato.

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