sexta-feira, 17 de novembro de 2017

POEMAS DE TEMA GREGO DE "LUCERNÁRIO"

                    ODISSEU


Na noite alta sua sombra sai
Dos membros lassos, e novamente
Entre os feácios e os ílios vai
Pisando as rochas sob o céu quente.

Reencontra as ondas rotundas, passa
O país lotófago, inclina o vinho
Na boca de ouro de heféstia taça,
Revê uma escarpa, um redemoinho.

Luta com o mar, conta as próprias dores,
Respira os prantos de íntimos mortos,
Sonha lá longe com os cobertores
Do seu palácio, e arqueja nos portos.

Pois sóis e noites de irreais esmaltes
Lhe ardem nas íris. Então acorda
Suado, ofegante... Calma, não saltes,
Não vás erguê-la, ela já não borda.


                                                        11/6/1992

                     HELENA


No cômodo onde Menelau vivera
Bateram. Nada. Helena estava morta.
A última aia a entrar fechou a porta,
Levavam linho, ungüento, âmbar e cera.

Noventa e sete anos. Suas pernas
Eram dois secos galhos recurvados.
Seus seios até o umbigo desdobrados
Cobriam-lhe três hérnias bem externas.

Na boca sem um dente os lábios frouxos
Murchavam, ralo pêlo lhe cobria
O sexo que de perto parecia
Um pergaminho antigo de tons roxos.

Maquiaram-lhe as pálpebras vincadas,
Compuseram seus ossos quebradiços,
Deram-lhe à boca uns rubores postiços,
Envolveram-na em faixas perfumadas.

Então chamas onívoras tragaram
A carne que cindiu tantas vontades.
Quando sua sombra idosa entrou no Hades
As sombras dos heróis todas choraram.


                                                                              6/5/1992



            OS ETERNOS


Estátuas dos deuses, brancos,
Um sem mãos, sem a cabeça
Um outro, a portar nos flancos
O manto de um sol que desça

Ou suba, aléia de gestos
Alvos, fitando o oceano
Alheia aos ventos funestos,
Ao sopro humano e inumano,

Fila de risos sem boca,
Longos olhares sem olhos,
Ouvidos surdos à rouca
Conversação dos escolhos,

Altivos, friamente ígneos,
Lançando dardos sem braços,
Sem alma urdindo os desígnios
Mais certos que os nossos passos,

Imortais, sonhos de nós,
Cristalizados, latentes,
Sem antes, hoje ou após,
Gélidos sobre as torrentes

Do sal impreciso, erguidos
Nas decisões sem entraves,
À noite de astros vestidos,
De dia do asco das aves,

E inabaláveis, repletos
Da glória de si, exatos,
Mutilados mais completos
Que a soma dos nossos atos,

Totalidades corpóreas,
Sorrisos leves do eterno,
Deuses, fixas trajetórias
Paradas num fora interno,

Deuses, imortais, imotos,
Gestualizadas conquistas,
Chamas, vizinhos remotos,
Hálitos de idos artistas

Há tanto, que é quase a lenda
Terem sido, serem, sem
Que alguma ausência os pretenda,
E a morte morre também.


                                                        2/6/1992


                 CORÉ


Virgem do sorriso antigo,
O que vês, por que sorris?
Que suave visão feliz
Que não há aqui, tens contigo?

O que os teus olhos, passando
Como num vidro, por nós,
Fitam, marmóreos e sós,
Além do nosso olhar brando?

Absorta, como assistindo
Naus a voltar da tormenta,
Lanças da guerra cruenta
Tornando, e ao sol refulgindo,

Que vês de melhor do que hoje
Somos, perpétua esperança,
Mistério ao qual jamais cansa
A dor que surge e a que foge?


                                                          9/7/1992



                        TROIA


Tudo houve aqui, e aqui era tão pouco...
Nem portais, nem palácio, nem muralhas
Viram tais blocos de adobes e palhas,
         Nem mesmo Aquiles rouco

De dor, nem um estranho cavalo oco...
Só ele, o Cego, os viu. Tantas batalhas
De após, entre milhões, foram migalhas
         Junto a esse sonho louco.

Vós, mortos de outras guerras, sois as lendas
Perto desses que nunca guerrearam.
         Mortal, nunca te prendas

Demais ao que achas que é. Quem faz o mundo
É o sonho. Os olhos do cego fitaram
         O humano sol mais fundo.



                                                                           26/6/1992


              ÍTACA


Quer tremam os céus
Que me auguram morte
Ou se estorça o deus
Da úmida cratera
Contra a minha sorte,
Ítaca me espera.

Cheire-me o gigante
Na inviolável furna,
Beba o mar bramante
A última galera
Na exaustão noturna,
Ítaca me espera.

Puxem-me as sereias
Com sonoros laços,
Prenda-me em suas teias
Aquela que impera
Nos mortais cansaços,
Ítaca me espera.

Lance-me bruxedos
A odiosa maga,
Mordam-me os rochedos
De dentes de fera
Onde o mar nos traga,
Ítaca me espera.

E lá longe brindem
Minha hora funesta,
Mesa e adega findem
Da mansão severa
Para a hedionda festa,
Ítaca me espera.

E então durmam tortos
De risos e vinhos,
Vivos quase mortos,
Neles meu ser gera
A ânsia dos caminhos.
Ítaca me espera!


                                           Barcelona-Madrid, 25/4/1992



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