SANGUE: UM CENTENÁRIO
Na vida literária do Brasil, o período que engloba as
duas primeiras décadas do século XX, mas que na verdade começou um pouco antes
e se estendeu muito além dessa limitação cronológica, passou a ser vulgarmente
conhecido entre nós como Pré-modernismo. Tal denominação, na historiografia
literária brasileira, traduz um conceito muito mais histórico ou sociológico do
que estético, e é um dos mais vagos, dos menos completamente definidos entre os
muitos que acompanharam o desenrolar das escolas, da época colonial até a nossa
contemporaneidade que assistiu à sua dissolução. Trata-se, na verdade, de um
conceito negativo, que só se pode definir pela negação, referindo-se àquilo
que, sem ser ainda modernista, já não seria mais exatamente parnasiano ou
simbolista. Tasso da Silveira preferia usar a palavra sincretismo para definir
o período, palavra talvez mais exata, mas que não alcançou a fortuna geral da
outra. As duas primeiras décadas do século, de fato, assistiram a uma
coexistência entre os frutos finais do Simbolismo e do Parnasianismo, o
surgimento de seus epígonos e o pressentimento de novas tendências que estavam
no ar. Se lembrarmos que Bilac morreu em plena atividade em 1918, deixando para
publicação póstuma Tarde, um dos seus
grandes livros, se lembrarmos que o admirável Alphonsus de Guimaraens estava no
auge de sua força criadora, em seu quase exílio em Mariana, até a sua morte, em
1921, percebe-se o evidente acavalamento de estilos e propostas nesse período,
que, grosso modo, se encerraria com a
data icônica da Semana de Arte Moderna, em 1922, embora um Alberto de Oliveira,
só como exemplo, continuasse vivo até 1937, um Augusto de Lima até 1934, assim
como um Vicente de Carvalho até dois anos após a mencionada Semana. Uma das
tentativas de delimitação cronológica de qual seria o período de vigência do
Pré-modernismo situa-o, habilmente, entre dois eventos marcantes, a publicação
de Os sertões em 1902, talvez o mais
importante marco de uma virada de mentalidade quanto à visão que o povo
brasileiro fazia de si próprio, e a já mencionada Semana de Arte Moderna de
1922. De maneira muito aproximativa, portanto, duas décadas, as duas primeiras
do século passado, nas quais estrearam grande parte dos que depois seriam os
nomes maiores do Modernismo, embora nesse momento se encaixassem perfeitamente
na noção de sincretismo a que nos referimos, sincretismo que dominava a
literatura do período, assim como o ecletismo dominava a arquitetura.
Sangue,
livro de estreia de da Costa e Silva, e sua obra mais emblemática, vem à luz em
1908, há exatamente um século, o título em grande letras vermelhas, como se
repetiria no Eu quatro anos depois. Se
mapearmos alguns dos títulos realmente importantes da poesia brasileira no período,
e que de algum modo se relacionam com a obra em questão, faz-se necessário relembrar
a publicação póstuma de Faróis, de
Cruz e Sousa, em 1900 — livro que, sob vários aspectos, inaugura a poesia
moderna no Brasil —, a de Kiriale, de
Alphonsus de Guimaraens, em 1902, embora escrito uma década antes; a publicação
em 1905, em Paris, por Nestor Victor, do sublime Últimos sonetos, de Cruz e Sousa; o surgimento, em 1908, dos dois
livros de poesia mais marcantes do ano, ambos estreias, o já mencionado Sangue, do grande poeta piauiense, e Apoteoses, de Hermes Fontes; o
inesperado e bombástico surgimento do Eu,
de Augusto dos Anjos, em 1912, e, estendendo mais o período, a estreia de
Manuel Bandeira com A cinza das horas,
em 1917, o canto de cisne de Bilac com o já lembrado Tarde, em 1919, e o que pode ser tomado como o encerramento do
período clássico do Simbolismo no Brasil, a publicação de Mistérios, do ex-padre José Severiano de Resende, em 1920, e a
edição póstuma do magistral Pastoral aos
crentes do Amor e da Morte, de Alphonsus de Guimaraens, em 1923.
Ao contrário de Apoteoses, com que Hermes Fontes surgiu de fato apoteoticamente em
1908, livro sem dúvida ligado ao Parnasianismo até na teorização do seu
prefácio, apesar de certas estranhezas nada ortodoxas para aquela escola, Sangue é, sem qualquer dúvida, um grande
título da poesia simbolista brasileira. O “Cântico do Sangue”, que abre o
livro, cumpre nele um papel arquitetônico semelhante ao que “Antífona” cumpre
em Broquéis, embora nada se encontre,
em Da Costa e Silva, da espécie de delírio verbal muito marcado naquele livro,
e do qual Cruz e Sousa se afastará gradativamente. Por outro lado, é impossível
não sentir o influxo de Cruz e Sousa no belíssimo “Turris Lucifera”, que poderia perfeitamente estar entre os Últimos sonetos, o que não é pouca
coisa:
Torres
altas dos nobres sentimentos,
Dos
nobres sentimentos mais supremos,
Alturas
imortais que apenas vemos
Com
o auxílio dos grandes pensamentos;
Soberbos,
colossais elevamentos
Onde
não toca o extremo dos extremos,
E
em cuja pompa nosso olhar perdemos
Na
transcendência dos deslumbramentos;
Torres
varando a névoa dos Espaços,
De
onde distende bênçãos sobre os mundos
A
Morte, abrindo a cruz dos longos braços...
Torres
em que, na eterna trajetória,
O
Ser dos sentimentos mais profundos
Ascende
para Deus e para a Glória!...
O influxo de Cruz e Sousa sobre Da
Costa e Silva foi, no entanto, menos marcante e definidor do que sobre Augusto
dos Anjos, cuja primeira feição vem muito diretamente do último livro do Poeta
Negro, até que o decisivo encontro com Cesário Verde e o próprio gênio
originalíssimo levassem-no a criar um Expressionismo avant la lettre entre nós.
Sangue
se compõe de 48 poemas, dos quais 36 são sonetos, proporção que deve
aproximar-se da média da época. Se atentarmos para os sinais externos de
escola, é marcante no livro o uso de maiúsculas, e ainda mais marcante o número
de títulos em latim, o latim eclesiástico tão ao gosto dos simbolistas de todos
os países: “In Tenebris”, “Consolatrix Afflictorum”, o já lembrado
“Turris Lucifera”, “Mater”, “De Profundis”, “Lacrimae
Semper”, “Ante Noctem”, “Post Mortem”, “Flumen Amoris”, “Soror
Doloris”, “Virgo Imponderabilis”,
“Turris Eburnea”, “Ignota Dea”, títulos que caracterizariam
muito bem um provável leitor do Verlaine convertido ou de Huysmans.
Como de hábito entre os simbolistas, no
seu universalismo espiritualista, o que poderíamos chamar de cor local está
quase ausente do livro, não fosse justamente pelo mais célebre poema de Da Costa
e Silva, muito sabiamente posto após os dois sonetos de “Mater”, o também soneto “Saudade”:
SAUDADE
Saudade!
Olhar de minha mãe rezando,
E
o pranto lento deslizando em fio...
Saudade!
Amor da minha terra... O rio
Cantigas
de águas claras soluçando.
Noites
de junho... O caburé com frio,
Ao
luar, sobre o arvoredo, piando, piando...
E,
ao vento, as folhas lívidas cantando
A
saudade imortal de um sol de estio.
Saudade!
Asa de dor do Pensamento!
Gemidos
vãos de canaviais ao vento...
As
mortalhas de névoa sobre a serra...
Saudade!
O Parnaíba - velho monge
As
barbas brancas alongando... E, ao longe,
O
mugido dos bois da minha terra...
Sobre esse soneto, dos mais belos da
poesia brasileira, escreveu Osvaldino Marques um trecho de uma incompreensão
crítica sem lacunas, que é um índice da inutilidade de espiolhar-se a juba do
leão quando se trata de arte:
“Orações gerundiais amiúde. Rimas do
mesmo campo lexicológico. O proverbial: “Saudade! Asa de dor do Pensamento!”
parece-me um pouco demais écriture
artiste na conceituação forçada de um concetto
sobremaneira vago. Por fim, implico com a palavra “caburé”, pouco eufônica e,
até certo ponto, um localismo, assim como a metáfora de “O Parnaíba — velho
monge / As barbas brancas alongando...”
verdadeira
aula, para além do pedantismo, de como não ler poesia. Bem mais valiosa é a
opinião de Sânzio de Azevedo, em seu importante ensaio “Da Costa e Silva e o sincretismo”,
ao afirmar, a respeito de “Saudade”, que
“Apesar de figurar no Panorama do Movimento Simbolista Brasileiro (1952), de Andrade
Muricy, e em outras coletâneas do Simbolismo nacional, a nós não nos parece que
seja típico da corrente de Cruz e Sousa. Para nós, ele se aproxima bem mais da
dicção parnasiana, em sua vertente brasileira, pela forma trabalhada sem esconder
o lirismo romântico.”
observação
com a qual concordamos, ressalvando, no entanto, o caráter inegavelmente
simbolista da expressão “velho monge” e da belíssima e caluniada “Asa de dor do
Pensamento”.
Muito se discutiu, de fato, a filiação
simbolista geralmente atribuída a Sangue,
na qual acreditamos totalmente. Além de inumeráveis características outras,
seria difícil não classificar como simbolista um livro que contém um soneto intitulado
“Josafat”, que termina com os dois seguintes versos:
Verlaine,
Mallarmé, Cruz e Sousa, Anto Nobre
Rezam
juntos por mim num profano Eucológio.
assim
como um soneto tal qual “Ódio bendito”, quase um pendant do “Ódio sagrado” de Cruz e Sousa. Ou um verso tão
característico como este, que nos faz pensar em Antônio Nobre ou em Alphonsus
de Guimaraens, e que abre a “Canção da Morte”: “Tenho uma noiva: é Dona Morte”.
Digno de nota, sob esse mesmo aspecto, é a presença no livro de um estranho
caligrama, “Visão de um louco”, que reproduz graficamente o círculo da lua,
forma a que o autor retornaria duas vezes em Zodíaco. Se tais extravagâncias
gráficas não são de modo algum privilégio do Simbolismo, antes velhas como o
mundo e encontráveis mesmo num livro romântico como os Cantos religiosos, de Fagundes Varela, é fato inegável o interesse
dos simbolistas por certas experiências visuais, inclusive no aspecto tipográfico
dos seus livros, bastando lembrar, a esse respeito, o Rosa Mística, de Júlio Afrânio, o futuro Afrânio Peixoto, que o
renegaria, impresso em quatro cores, em 1900, na cidade de Lepizig.
No livro seguinte de Da Costa e Silva,
no entanto, Zodíaco, de 1917, assim
como em Pandora, de 1919, fortes
características parnasianas se juntam a esse substrato simbolista, embora no
primeiro o poeta utilize fartamente um verso polimétrico que nada tem a ver com
a escola, verso onde há um provável influxo de Verhaeren, autor de uma das
epígrafes do livro e poeta ao qual Da Costa e Silva dedicaria um poema,
publicado numa plaquette em 1917. Zodíaco é um livro de impressionante
virtuosismo formal. Seria mais do que interessante comparar um soneto
fortemente aliterado como “O sapo”, deste livro, com outro de características
temáticas e formais muito próximas, como “O porco”, dos “Painéis zoológicos” do
já lembrado Mistérios, de José
Severiano de Resende — esse um simbolista insuspeito —, para demonstrar como a
classificação por escolas é mais do que melindrosa nesse período. Detalhe
curioso é a forte presença da figura materna em toda a obra de Da Costa e
Silva, como em poucos outros poetas brasileiros é possível constatar.
O último livro de Da Costa e Silva, Verônica, de 1927, talvez seja, na nossa
opinião, o ponto mais alto de sua obra. Trata-se de um livro severamente
elegíaco, todo ele uma reflexão sobre o destino, a vida e a morte, com alguns
sonetos magistrais e poemas admiráveis como “Diálogo interior” ou “Litania das
horas mortas”, esse uma indubitável reaproximação do Simbolismo. Alguns dos
últimos poemas de Da Costa e Silva, que nos primeiros anos da década de 1930
entrou num gradativo alheamento psicológico, até o silêncio, como Hölderlin,
apontam para uma clara aproximação da estética modernista. “Despertar no
Amazonas”, “Carnaval”, “Refrão do trem noturno”, “O carrossel fantasma” parecem
indicar os pródromos de uma nova e poderosa fase do poeta. A verdade, por mais
inútil que sejam essas reflexões sobre possibilidades não cumpridas, é que não
podemos saber qual teria sido o panorama geral da poesia brasileira depois do
Modernismo caso não houvessem acontecido as mortes precoces de Augusto dos
Anjos e de Raul de Leoni, assim como o silêncio de Da Costa e Silva.
Mas é Sangue, de um modo ou de outro, que permanece como o seu livro mais
icônico, entre outros motivos, talvez, por conter o irresistível “Saudade”,
pela força do seu título, por ter sido a estreia de um dos maiores poetas do
Brasil naquele momento. Por tudo isso é um importante centenário esse que
evocamos, neste ano tão rico em efemérides para a literatura brasileira.
Alexei Bueno
Prezado Poeta Alexei Bueno
ResponderExcluirTudo bem? Meu nome é Ranieri Ribas, do Piauí, terra de Da Costa e Silva. Acompanho suas publicações há uns vinte anos. Certa feita, quando eu morava no Rio, em Botafogo, fui a um bar tomar uma cerveja com um amigo sociólogo. Ele me pediu para que eu descrevesse o quadro da poesia brasileira contemporânea (em 2007). Comecei a explicar e falei da sua posição corajosa diante da hegemonia concretista. Imediatamente, um cara que estava sentado ao nosso lado, cujo nome não me lembro mais, aproximou-se de mim, disse que estava ouvindo a descrição e pediu pra sentar com a gente. Respondi que sim, poderia sentar-se e falar sobre a poesia brasileira contemporânea. O cara começou a contar uma estória. Disse que era seu amigo e que sua primeira publicação na juventude foi feita numa edição de duas capas com ele. Você e ele dividiram a publicação por conta dos custos. Metade do livro continha poemas seus, outra metade poemas dele. Depois fui investigar no google e não encontrei evidências.
Depois disso eu resolvi escrever um artigo sobre a "crise da poesia brasileira contemporânea".
é verdade isso?
Saudações cordiais!
Ranieri
Meu caro Ranieri,
ExcluirMuito lhe agradeço o interesse. Essa história não procede, publiquei meu primeiro livro em 1979, aos 16 anos, obra imatura e por conta do autor, obviamente, mas nada semelhante ao que lhe contaram.
Abração,
Alexei
Prezado Alexei,
ResponderExcluirA Editora Positivo tem interesse em reproduzi uma foto e poema seu.
Poderia por favor responder para o e-mail mayaray@positivo.com.br para que possamos tratar sobre a autorização?
Muito obrigada,
Atenciosamente,
Mayara
Caro Alexei,
ResponderExcluirA algum tempo soube que você conseguiu um material sobre a família Freitas, para ser mais exato, sobre o Alcides Freitas. Sou historiador, residente aqui no Piauí, pesquisador da família Freitas, inclusive escrevi minha dissertação sobre a escritora Amélia de Freitas Bevilaqua. Por favor, poderia entrar em contato? Meu e-mail: ninocessar992@gmail.com