Como na última postagem só me referi aos óculos da estátua do poeta, nesta - às vésperas do imperdível jogo França x Bélgica - falo do próprio. Este pequeno texto foi lido na saudosa Livraria Leonardo da Vinci, no dia do seu aniversário de 109 anos.
DRUMMOND
E A FRANÇA
Para analisar as relações de um poeta,
de um intelectual, de um escritor com outro país, outra cultura, outra
literatura, três caminhos se revelam incontornáveis: o do leitor, com as possíveis
influências daí advindas, o que só confissões memorialísticas ou epistolares
podem revelar; as referências àquela nacionalidade dispersas pela sua obra, e o
exercício da tradução dessa literatura, caso ela haja existido. No caso de Carlos
Drummond de Andrade e a França, os três caminhos existem, e aqui deles
falaremos muito brevemente.
No século XIX, o influxo cultural e literário da França
sobre o Brasil, como todos sabemos, era absoluto, vindo em segundo lugar o de
Portugal, e muito mais longinquamente o inglês — através de Byron, antes de
tudo — e o alemão, para uns poucos dos nossos grandes românticos que conheciam
a língua, como Gonçalves Dias. Tal influxo seguiu fielmente o desenrolar das escolas,
num Parnasianismo perfeitamente francês e num Simbolismo da mesmíssima origem,
e se estendeu até o Modernismo, bastando, nesse caso, recordar a avassaladora
influência de um suíço-francês como Blaise Cendrars sobre Oswald de Andrade.
Essa constante, que só começou a decrescer após a Segunda
Guerra, reflete-se mesmo nos poetas brasileiros de maior ou menor importância
que escreveram alguma obra ou mesmo a obra inteira em francês, como o grande
Alphonsus de Guimaraens de Pauvre Lyre
até Pethion de Villar, ou seja, o baiano Egas Moniz Barreto de Aragão; Jacques
d’Avray, o gaúcho José de Freitas Vale; Aloísio de Castro, Sérgio Milliet ou
Guilherme de Almeida, autor, em 1916, das peças Mon couer balance e Leur âme,
ambas em parceria com o já lembrado Oswald de Andrade.
A primeira referência de Drummond à França aparece em Alguma poesia, seu livro de estreia, de
1930, no poema, do qual citamos o início e o final, justamente intitulado:
EUROPA FRANÇA E BAHIA
Meus
olhos brasileiros sonhando exotismos.
Paris.
A torre Eiffel alastrada de antenas como um caranguejo.
Os
cais bolorentos de livros judeus
e
a água suja do Sena escorrendo sabedoria.
O
pulo da Mancha num segundo,
Meus
olhos espiam olhos ingleses vigilantes nas docas.
Tarifas
bancos fábricas trustes craques.
Milhões
de dorsos agachados em colônias longínquas formam um tapete para Sua Graciosa
Majestade Britânica pisar.
E
a lua de Londres como um remorso.
.........................................................................................
Chega!
Meus
olhos brasileiros se fecham saudosos.
Como
era mesmo a “Canção do Exílio”?
Eu
tão esquecido de minha terra...
Ai
terra que tem palmeiras
onde
canta o sabiá!
(Alguma poesia, 1930)
Como
vemos, um relance imaginário sobre o mítico Velho Mundo, por um poeta
sedentário que nunca o conheceria, no qual sentimos algo do Apollinaire de “Le Pont Mirabeau”, na referência à “água
suja do Sena”, terminando na infalível,
entre os nossos modernistas de primeira hora, rememoração ou paródia da “Canção
do Exílio”.
Nos
livros seguintes, Brejo das almas, Sentimento do mundo e José, não se encontra qualquer referência
à França, que reaparecerá, de forma muito sutil, em A rosa do povo, de 1945, o grande livro do Carlos Drummond de
Andrade social e político, antes de se desencantar com as ideologias, num dos
seus mais admiráveis poemas, “Com o russo em Berlim”, o mais belo poema de
guerra da nossa literatura. Nele encontramos uma referência a Paris e outra às
Ardenas, que não podemos omitir, tendo em vista a importância da batalha lá
travada, apesar de as Ardenas não se limitarem ao território francês, fazendo
parte igualmente da Bélgica e do Luxemburgo. Por tudo isso, vou dar-me ao luxo
de ler integralmente esta obra-prima, convicto de que um dos grandes choques
morais para todos os intelectuais não fascistas do Ocidente foi a queda da
França, em 1940, como bem descreve, num texto memorável, George Bernanos, que
entre nós se encontrava naquele momento trágico:
COM O RUSSO EM BERLIM
Esperei
(tanta espera), mas agora,
nem
cansaço nem dor. Estou tranquilo,
Um
dia chegarei, ponta de lança,
com o russo em Berlim.
O
tempo que esperei não foi em vão.
Na
rua, no telhado. Espera em casa.
No
curral, na oficina, um dia entrar
com o russo em Berlim.
Minha
boca fechada se crispava.
Ai
tempo de ódio e mãos descompassadas.
Como
lutar, sem armas, penetrando
com o russo em Berlim?
Só
palavras a dar, só pensamentos
ou
nem isso: calados num café,
graves,
lendo o jornal. Oh, tão melhor
com o russo em Berlim.
Pois
também a palavra era proibida.
As
bocas não diziam. Só os olhos
no
retrato, no mapa. Só os olhos
com o russo em Berlim.
Eu
esperei com esperança fria,
calei
meu sentimento e ele ressurge
pisado
de cavalos e de rádios
com o russo em Berlim.
Eu
esperei na China e em todo canto,
em
Paris, em Tobruc e nas Ardenas
para
chegar, de um ponto em Stalingrado,
com o russo em Berlim.
Cidades
que perdi, horas queimando
na
pele e na visão: meus homens mortos,
colheita
devastada, que ressurge
com o russo em Berlim.
O
campo, o campo, sobretudo o campo
espalhado
no mundo: prisioneiros
entre
cordas e moscas; desfazendo-se
com o russo em Berlim.
Nas
camadas marítimas, os peixes
me
devorando; e a carga se perdendo,
a
carga mais preciosa: para entrar
com o russo em Berlim.
Essa
batalha no ar, que me traspassa
(mas
estou no cinema, e tão pequeno
e
volto triste à casa; por que não
com o russo em Berlim?).
Muitos
de mim saíram pelo mar.
Em
mim o que é melhor está lutando.
Possa
também chegar, recompensado,
com o russo em Berlim.
Mas
que não pare aí. Não chega o termo.
Um
vento varre o mundo, varre a vida.
Este
vento que passa, irretratável,
com o russo em Berlim.
Olha
a esperança à frente dos exércitos,
olha
a certeza. Nunca assim tão forte.
Nós
que tanto esperamos, nós a temos
com o russo em Berlim.
Uma
cidade existe poderosa
a
conquistar. E não cairá tão cedo.
Colar
de chamas forma-se a enlaçá-la,
com o russo em Berlim.
Uma
cidade atroz, ventre metálico
pernas
de escravos, boca de negócio,
ajuntamento
estúpido, já treme
com o russo em Berlim.
Esta
cidade oculta em mil cidades,
trabalhadores
do mundo, reuni-vos
para
esmagá-la, vós que penetrais
com o russo em Berlim.
( A rosa do povo, 1945)
Em
1951, já extinto o otimismo político da época da Guerra, Drummond abre aquele
que talvez seja o maior de seus livros, Claro
enigma, com uma epígrafe de Paul Valéry, que explica à perfeição o seu
estado de espírito e a virada temática que acontecia em sua obra poética: “Les évenements m’ennuient”, ou seja, “os
acontecimentos me entendiam”, ou, outra tradução possível, “me aborrecem”.
Na mesma época, por instâncias do conhecido “mercador de
livros” Carlos Ribeiro, da Livraria São José, o poeta escrevia o delicioso “Soneto
da buquinagem”, neologismo do francês, onde encontramos as palavras bouquin ou bouquiniste, de etimologia insegura. É de se notar, no último
verso, a referência a François Villon:
SONETO DA BUQUINAGEM
Buquinemos,
amiga, neste sebo.
A
vela, ao se apagar, é sebo apenas,
e
quero a meia-luz. Amo as serenas
angras
do mar dos livros, onde bebo
—
álcool mais absoluto — alheias penas
consoladas
na estrofe, e calmo, e gebo,
tiro
da baixa estante sete avenas
em
sete obras que pago e que recebo.
Amiga,
buquinemos, pois é morta
Inês
de antigos sonhos, e conforta
no
tempo de papel tramar de novo
nosso
papel, velino, e nosso povo
é
Lucrécio e Villon, velhos autores,
aos
novos poetas muito superiores.
(Viola de bolso, 1952)
Doze
anos mais tarde, em 1964, o escritor carioca Luís Martins — já há muito vivendo
em São Paulo, casado com Tarsila do Amaral — publicou o fundamental Noturno da Lapa, ele que já era aquele
que mais escrevera sobre o célebre bairro boêmio, algo como o Pigalle do Rio de
Janeiro, com o romance Lapa, de 1936
— romance fraco, apreendido e queimado pela polícia do Estado Novo — assim como
o romance A terra como tudo, de 1937,
este bem melhor e muito mais centrado no bairro, embora não o evocando no
título. Para a sua terceira obra sobre o mesmo tema escreveu Drummond, seu
amigo de velha data, esse maravilhoso triolé:
L. M.
Villon,
Verlaine e Luís
encontraram-se
na Lapa.
A
vida — essa meretriz —
tanto
beija como escapa.
Villon,
Verlaine e Luís
trautearam
suas canções
com
riso, lágrima e uísque,
e
entre tantas emoções
deixaram
na noite escura
—
Villon, Verlaine e Luís —
a
luz mais terna, mais pura.
(Noturno da Lapa, 1964)
Como vemos, para se referir ao bairro de prostituição,
bebedeira e malandragem que era o ponto maior do mapa do Distrito Federal da
nação, Drummond relembra ainda uma vez o assassino, ladrão e poeta genial
François Villon, agora ao lado do genial poeta e alcoólatra contumaz Paul
Verlaine, ambos franceses, e dos maiores.
Se até aqui nos limitamos a recensear perfunctoriamente as
referências drummondianas à França, agora é preciso relembrar o tradutor,
“tradutor Deus sabe como”, de acordo com a auto-ironia algo machadiana com que
o poeta sempre se referiu a si próprio. Seu trabalho de tradutor do francês, no
entanto, não é pequeno nem esporádico. Para começarmos pela prosa, traduziu ele,
em 1943, Thérèse Desqueyroux, de
François Mauriac, com o título português Uma
gota de veneno. De 1947 é a tradução de Les
liaisons dangereuses, de Chordelos de Laclos, ano no qual, aliás, fato
inacreditável, foram lançadas no Brasil outras três traduções do mesmo romance
epistolar. Em 1954 Drummond traduz Les
paysans, de Balzac, e, dois anos depois, Albertine disparue, ou La
fugitive, de Marcel Proust. Em 1960, afastando-se completamente do campo da
literatura, o poeta traduz, por encomenda da Biblioteca Nacional, o álbum Oiseaux-mouches orthorynques du Brésil,
de Jean Théodore Descortilz. Em 1962, finalmente, traduz Drummond duas peças do
francês, L’oiseau bleu, do belga
Maurice Maeterlinck, e Les fourberies de
Scapin, de Molière.
Em relação à poesia, Drummond, que chegou a imaginar, no
início dos anos de 1950, um livro de poemas traduzidos com o título de Poesia errante — livro que não se
efetivou, como, por exemplo, os Poemas
traduzidos de Manuel Bandeira — verteu para o português poetas franceses
tão diversos como o grande e já lembrado Apollinaire, Charles Vildrac, Andrè
Verdet ou Paul Éluard.
Se já falamos das referências à França em sua poesia e ao
seu trabalho de tradutor de escritores franceses ou de expressão francesa, resta-nos
comentar o que ficou da França na memória do poeta, especialmente aquela do seu
período de formação. Se Drummond não escreveu memórias no exato sentido da
palavra, como o seu grande amigo e prosador magistral Pedro Nava, ela as
escreveu em verso, no muito vasto conjunto que intitulou Boitempo. Ali, como não poderia deixar de ser, a França e a Europa
aparecem, como entidades icônicas e quase inalcançáveis na sua infância de
menino provinciano, como vemos no poema:
HERÓI
Regressa
da Europa Doutor Oliveira.
É
dia de festa na cidade inteira.
Doutor
Oliveira fez longa viagem.
Maior,
mais brilhante ficou sua imagem.
Viajou
de cavalo, de trem, de navio.
Foi
bravo, foi forte, venceu desafio.
Falou
língua estranja, que não percebemos.
Ergueu
nosso nome a pontos extremos.
Conversou
doutores de barbas sorbônicas
e
viu catedrais, joias arquitetônicas.
Papou
iguarias jamais igualadas
nas
jantas mais finas: consommés,
saladas,
ovas
de esturjão, e pratos mil flambantes,
que
aqui falecemos sem conhecer antes.
Praticou
mulheres das mais perigosas,
ofertou-lhes
mimos, madrigais e rosas.
Nenhuma
o prendeu entre grades de seda.
Volta
o nosso amigo, livre, de alma leda.
Tudo
há de contar-nos à luz do lampião,
para
nosso pasmo e nossa ilustração.
Depressa,
cavalos e arreios de prata,
que
vai esperá-lo o povo bom, a nata.
Da
cidade às portas, como triunfador,
eis
chega Oliveira, preclaro doutor.
Ginetes
aos centos correm a saudá-lo.
Foguetes,
discursos e até o abalo
de
tiros festivos no azul — eta nós!
dados
por Janjão e por Tatau Queirós.
Pois
quem destes matos foi até Paris
honrou
nossa terra, deu-lhe mais verniz.
E
assim, ao apear, desembarca na História
Doutor
Oliveira, para nossa glória.
(Boitempo II, 1973)
Mais
diretamente percebemos algo do espírito francês na referência ao originalíssimo
aventureiro que foi Émile Rouède, pintor de importância para a iconografia
mineira da época em que andou por aquele Estado:
O FRANCÊS
Emílio
Rouède, esse francês errante
primeiro
terrorista brasileiro:
dinamitou
o túnel em Rodeio
para
depor – audácia – Floriano.
Emílio?
Dinamitou coisa nenhuma.
Sua
dinamite era verbal.
Mas
por via das dúvidas recolhe-se
à
doçura dos cerros de Ouro Preto
aonde
não chega o braço floriano.
E
começa a pintar. E pinta pinta
paisagem
mineira sem cessar.
Acabando
a paisagem disponível
(ou
o enerva a natura pachorrenta)
vou
ali – diz Emílio – ao Mato Dentro
fundar
um ginásio e dar-lhe nome
de
esquecido poeta destas brenhas.
Santa
Rita Durão, outro agitado
que
nem Emílio, volta às Minas pátrias.
É
colégio, que bom. Mas dura pouco
e
lá se vai Emílio, hoje fotógrafo,
rumo
a diamantes improváveis
da
longe Diamantina.
Os
antigos referem: Por aqui
Certo
francês alegre andou um dia.
E
lá se vai Emílio, rumo a nada.
(Boitempo II, 1973)
Ainda
mais diretamente relacionado com a formação francesa de Carlos Drummond de
Andrade é o seguinte poema, bastante divertido, também de Boitempo:
CULTURA FRANCESA
Com
Mestre Emílio aprendi
esse
pouco de francês
que
deu para ler Jarry.
Murilo,
diabo na aula,
tinha
gestos impossíveis
que
nem macaco na jaula.
Mestre
Emílio, tão severo
não
via no último banco
o
aluno de moral-zero.
Os
verbos irregulares
saltavam
do meu Halbout,
perdiam-se
pelos ares.
Nunca
mais os encontrei...
Talvez
Brigitte Bardot
me
ensinasse o que não sei.
(Boitempo II, 1973)
O
“meu Halbout” do poema se refere ao professor de francês José Francisco
Halbout, autor de uma Gramática teórica e
prática da língua francesa que foi livro didático de uso geral no Brasil
nas duas últimas décadas do século XIX até meados do século seguinte.
O
mesmo ambiente de estudo linguístico reaparece no seguinte poema:
AULA DE FRANCÊS
Cette Hélène qui trouble et l’Europe et l’Asie,
Mas
o professor é distraído,
não
vê que a classe inteira se aliena
das
severas belezas de Racine.
Cochicham,
trocam bilhetes e risadas.
Este
desenha a eterna moça nua
Que
em algum país existe, e nunca viu.
Outro
some debaixo da carteira.
Os
bárbaros. Será que vale a pena
ofertar
o sublime a estes selvagens?
O
professor Arduíno Bolívar
Fecha
a cara, abre o livro.
Ele
não os despreza. Ama-os até.
Podem
fazer o que quiserem.
Ele
navega só, em mar antigo,
A
doce navegação de estar sozinho.
Tine
a campainha. Acabou a viagem, no fragor
de
carteiras e pés.
O
professor regressa rígido
sistema
métrico decimal das ruas de Belo Horizonte.
(Boitempo II, 1973)
O
alexandrino que abre o poema é um verso célebre da Iphigénie en Aulide, de Racine.
Finalmente,
para encerrarmos esta nossa viagem ao passado de um poeta e de suas relações
com um país e uma cultura, leremos este curto poema que se refere à visita do
Conde D’Eu ao Brasil em 1921, acompanhando a trasladação dos restos mortais de
seus sogros D. Pedro II e Dona Teresa Cristina. O príncipe morreria pouco mais
tarde, em 1922, no navio que o trazia para as festas do Centenário da Independência.
É um poema sobre o fluir inexorável do tempo, sobre o fim de uma era, e o
julgamos, por isso mesmo, um fim bastante exato para esta nossa despretensiosa
fala a respeito de Carlos Drummond de Andrade e a França.
O PASSADO PRESENTE
Vejo
o Conde D’Eu no Grande Hotel.
Fala
francês com Dr. Rodolfo Jacob.
O
fantasma da Monarquia
é
o terceiro, invisível, interlocutor.
Lá
fora o sol encandece, republicano.
Ah,
nunca pensei que o passado existisse
assim
tocável, a mexer-se.
Existe.
E fala baixo. Daqui a pouco
toma
o trem da Central, rumo ao silêncio.
(Boitempo II, 1973)
Alexei Bueno
31-10-2011
Bela aula, prezado! Tenho esperança que você nos traga Villon em português. Ou v já fez e eu desconheço?
ResponderExcluirGrande Drummond! Grande França! Grande Alexei que juntou os dois em mais um brilhante ensaio!
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