LAPA
Nesta
casa antiga,
Sob estas
volutas,
Como ri
com as putas
Entre uma
e outra briga.
Como
virei copos
E
extingui charutos,
Discuti
com brutos,
Vaiei
misantropos.
Urinei
nas pias,
Vomitei
nas portas,
Com
passadas tortas
Vi nascer
os dias.
Velha,
velha casa,
Como
ainda és a mesma.
(Não tens
dentro a lesma
Que nos
funda e abrasa.)
(A árvore seca, 2006)
BECO DOS
BARBEIROS
Nossos
pés e as folhas secas
Há
tempos, tempos, te roçam
As
pedras, quase as remoçam,
Polidas
como carecas.
As
folhas, como os calçados
Perdidos
para o outro mundo
Dão-te um
concerto profundo
De
estalos, riscos, chiados.
Folhas de
oitis, de mangueiras,
Botas,
tamancos, coturnos,
Pés nus,
ébrios pés noturnos,
Jornais
lidos, amendoeiras,
Chinelos,
heras, jaqueiras,
Gramíneas,
notas fiscais,
Bilhetes
de nunca mais,
Bengalas
de áureas ponteiras,
Sapatos,
rosas, cobranças,
Folhas
dos homens, dos troncos,
Todos
hirtos, ambos broncos,
Sapatilhas,
pés de crianças,
Que ruído
em rio, que rio
De eras
sem fim, litania
Do
abismo, na pista esguia
Do teu
traçado sombrio
Que, à
frente e atrás, é uma foz
Dando ao
nada, é o dom das ruas,
Sob uns
cem mil sóis, mil luas,
Ruidoso,
fluente, feroz.
(As desaparições, 2009)
CEMITÉRIO
DAS POLACAS
Nos
beliches sobre o oceano,
Nas camas
de Lapa ou Mangue
Fizeram-se,
corpo e sangue,
Algo
horizontal e plano.
Sob o lustre,
ao som do piano,
Quanto
gesto ousado ou langue,
Que mudo
medo da gangue
Que as
trouxe, que asco inumano.
Mas
ei-las, ainda deitadas
Nos seus
leitos de cimento,
Seus
barcos sem amuradas.
Doadoras
do esquecimento,
Ei-las na
paz olvidadas
De todos,
menos do vento.
(As desaparições, 2009)
PASSEIO PÚBLICO
(DEVANEIO)
Como a
vida cansa. Fosse eu já um busto
Num
jardim bem sujo, entre espinheiros rombos.
Meu
crânio lustroso sob um sol adusto
Ficaria
branco com as fezes dos pombos.
Que em
meu pedestal os bêbados, aos tombos,
Viessem
se escorar e vomitar sem susto.
Bandas no
coreto, entre marciais ribombos,
Nunca
acordariam meu perfil vetusto.
Máscara
sem alma, patinando ao vento,
Que
nenhum passante sequer fitaria,
Tendo
embaixo um nome que ninguém leria.
E se
alguém o lesse, no fragor violento
Da hora
do retorno, nem o guardaria,
Servo de
um senhor que não se aplaca: o dia.
(As desaparições, 2009)
AVENIDA MEM DE SÁ
Dois
filhotes de poodle na varanda
Do casarão decrépito
Fitam o
rio de metal e estrépito
Que a hora comanda.
Seis da
tarde. Os dois brinquedinhos brancos,
Entre as
rendas da grade
Vetusta,
cheiram com curiosidade
O fumo dos arrancos.
São duas
gotas límpidas de cera
Da vela do existir
Sobrenadando,
antes de submergir,
O vão de onde o hoje é a beira.
Em breve,
um dia, lá estará a sacada
Vazia, ou de outras formas.
Assim se
cumprem as sublimes normas
Que não dão trégua ao nada.
(As desaparições, 2009)
CEMITÉRIO DOS PRETOS NOVOS
(GAMBOA)
O mar
ficara atrás, defronte o nada.
Sem seu
mundo, nem o outro, ei-los sepultos,
Ossos,
cinzas, libertos dos insultos
Sob o
asfalto, os assoalhos, a calçada.
Invisíveis,
na alheia madrugada,
Levantam-se,
reúnem-se, e seus vultos
Fitam a
ruela livre de tumultos
E
enxergam nela a cena insuspeitada.
Hienas,
zebras e leões varam as casas,
Girafas e
baobás nascem das telhas,
Os grous
nos postes bicam suas asas,
E eles,
ao fogo, com cauris e contas,
Dançam,
estátuas brônzeas ou vermelhas,
Além da
vida de ódios e de afrontas.
(As desaparições, 2009)
APELO
Quando,
cidade, eu deixar-te,
Em que
mundos pulsará
Esta
falta que já está
Por aqui,
por tanta parte?
Esta
saudade sem termo
Para onde
irá? Que desgraça
O exílio
do que se passa
No teu
corpo infante e enfermo.
Nunca
mais, manhã bem cedo,
Caminhar
na Rua Larga
Entre os
caminhões de carga
E o abrir
portas, que degredo.
Nunca
mais o Bar do Joia,
O Gaúcho,
o Paladino.
O que há
depois do destino?
Sem mãos,
que mão nos apoia?
Nunca
mais os sebos reles
Da Feijó,
da Tiradentes,
Nem as
luzes descendentes
Sobre as
mais diversas peles.
Nunca
mais o Hotel Planalto,
O
Triângulo das Sardinhas,
Velhas
pedintes mesquinhas,
A corrida
após o assalto.
O ouro
vítreo das tulipas,
Os sinos nas rijas torres,
Os sinos nas rijas torres,
As
querelas entre os porres,
O óleo
sujo a fritar tripas.
Nem o
Campo de Santana
Com
estátuas, ébrios, putos,
Nem
pombos nos cocurutos
De uns
heróis que a brisa abana.
Nem a Rua
do Ouvidor,
Rosário,
Gonçalves Dias,
Quilométricas
de dias,
De longas
filas de dor.
Nem o
Largo da Carioca
Pleno de
povo e de lixo,
Papéis de
jogo de bicho
Que um
vento cego desloca.
Nem Lapa,
nem Cruz Vermelha,
Gamboa, e
os burros-sem-rabo
Rinchando,
ou pipas num cabo
De luz,
nem matos na telha.
Nem
descer a Rio Branco,
Cinelândia,
Serrador...
É
possível tal horror,
Tal golpe
à esquerda, no flanco?
Resta-me
ser um fantasma,
Acolhe-me,
pois, qual sombra,
Cidade
que amo e me assombra,
Num tempo
que o tempo plasma.
Deixa-me,
espectro, cruzar-te,
Eterno,
nesses lugares
Que são e
foram meu lares,
Eu, teu
cerne e tua parte.
(As desaparições, 2009)
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