HELIO
BRASIL: A PERSISTÊNCIA DA MEMÓRIA
O
título deste texto, aquela parte dele que se segue ao nome do autor que é seu
objeto, é sabidamente o de um quadro de Salvador Dalí, de 1931, aliás de uma de
suas obras mais célebres, com seus inesquecíveis – sem jeu de mots – relógios derretidos, uma dessas imagens que,
independentemente da maior ou menos admiração que cada um tenha pelo artista,
se transformaram em ícones inarredáveis do patrimônio visual do século XX.
Curiosamente – e o citamos sem pensar nisso - o quadro é do
mesmo ano do nascimento de Helio Brasil. Fora a coincidência, não consideramos
o título dos mais precisos, pois pode der a impressão de que o autor é um memorialista,
coisa que ele é também, mas muito mais do que isso. Não há ficcionista que não
inclua elementos autobiográficos em sua obra, alguns de forma muito sutil,
outros de forma totalmente definidora. Como exemplo do segundo caso, podemos
citar três dos maiores escritores do século XX, Proust, Kazantzákis e Céline. Em
relação ao primeiro, a característica memorialística da Recherche é confessa e sabida de todos. Em relação ao segundo, pelo
menos duas de suas obras-primas, Vida e
proezas de Aléxis Zorbás (mais conhecido como Zorba, o Grego, graças ao brilhante filme de Cacoyánnis) e Capitão Mihális: liberdade ou morte,
nasceram da mais sólida base memorialística. No caso de Céline, terceiro e
último, já não há como se traçar um fronteira mínima entre a memória e o
romance, sobretudo em relação à trilogia da sua fuga, com a mulher (que está
viva e à beira de completar 106 anos) e o gato, após a liberação da França.
Tal
não é o caso de Helio Brasil, onde o elemento da memória é muito forte, mas a presença
do ficcionista é preponderante. Mas se nessa ficção a memória – mesmo a memória
dos personagens – tem papel primordial, e, acima do resto, se tudo enfim é
memória, como podemos bergsonianamente afirmar, o título afinal se justifica.
Helio
Brasil é um autor da maturidade, já que, após toda uma vida dedicada à Arquitetura,
estreou em livro em 1995, aos 64 anos. Sob este aspecto é um autor da
maturidade de forma quase tão marcante quanto o foi o nosso grande
memorialista, Pedro Nava, que, após uma vida toda dedicada à Medicina, e havendo
publicado apenas um bom livro sobre ela, estreou de fato aos 69 anos. Deixaremos
à parte as obras de Helio Brasil no campo da História e da Arquitetura, o excelente
São Cristóvão: memória e esperança,
da coleção Cantos do Rio, de 2004 – onde o elemento memorialístico é muito marcado
–; O Solar da Fazenda do Rochedo e
Cataguases, em colaboração com José Rezende Reis, de 2010, e Tesouro: o Palácio da Fazenda, da Era Vargas
aos 450 anos do Rio de Janeiro, a quatro
mãos com Nireu Cavalcanti, em 2016. Independentemente desses títulos, todos
valiosos, o ficcionista Helio Brasil nasce, de fato, com Anjo de Bronze e outros contos, em 1995.
Nesta
coletânea inaugural já se percebem claramente algumas características
definidoras do autor. De início, a presença central do Rio de Janeiro em sua obra,
o que o coloca na boa tradição de Machado de Assis, Lima Barreto ou Marques Rebelo – outro autor no qual a memória e ficção às vezes mal se distinguem,
especialmente no seu roman fleuve
inacabado, O espelho partido, que,
muito mais do que um romance, se trata de um diário, um diário à clef, muito interessante panorama da
vida intelectual da capital da República na primeira metade do século XX, com
os personagens reais facilmente reconhecíveis sob seus nomes ficcionais, nos
três volumes que o autor logrou terminar.
Ficcionista nato, vocacionado narrador de histórias, Helio
Brasil, em Anjo de bronze, vai de um
registro de tal modo lírico, na narrativa que dá nome ao livro, que a faz parecer
mais um poema em prosa do que um conto, à descrição cruel da realidade, – outra
característica sua que nos parece aproximá-lo de uma tradição naturalista – e até
o realismo cruamente cheio de humor do admirável “Juracy! Juracy!”, conto que
é, do início ao fim, um monólogo interior, no pleno exercício da forma criada por
Édouard Dujardin em Les lauriers sont
coupés, de longa e prestigiosa descendência literária.
Em 2004, abandonando as narrativas curtas, Helio Brasil estreia
no romance, com A última adolescência,
que consideremos a sua obra-prima. Nele as duas características que enunciamos
se fundem à perfeição, o fundo memorialístico e a ligação com o nosso
Naturalismo, que, em certos momentos, faz dele um longínquo descendente de
Álvares Azevedo ou Adolfo Caminha – Zola, como sempre, por trás de todos. Detalhe
a ser destacado é a extraordinária precisão do autor na reconstituição física
dos ambientes. Como há escritores médicos que são de uma acuidade a toda a prova
ao descrever detalhes fisiológicos, patologias ou ferimentos (Homero, no último
caso, era extraordinário), esse virtuosismo na descrição das construções e do
espaço urbano que encontramos em Helio Brasil deve forçosamente relacionar-se
com a sua condição de arquiteto. A grande riqueza de A última adolescência, no entanto, repousa na sua vasta e variada galeria
de personagens, na ambiência, no clima
que os envolve num mesmo ponto do espaço e do tempo, e no sentido muito
requintado do fluir deste, conduzindo tudo, neste nosso impermanente mundo, à
inescapável desaparição. Passado em parte num período marcado pelo radicalismo
político e pela Grande Guerra, tal ambiência de essencial insegurança dá origem
a um impressionante capítulo completamente à parte do realismo do livro, o do
misterioso personagem com um cachorro negro que é percebido pelos moradores da
vila em que todos residiam em determinada noite, capítulo fortemente onírico, com
ressonâncias surrealistas, que, no entanto, se entrosa perfeitamente com o
clima realista de todo o resto. A melancólica percepção da fuga do tempo cria a
forte unidade emocional do livro, fluindo, como ele, da primeira à última
página.
De
2014 é o livro de contos ou novelas – esta distinção sempre melindrosa – Pentagrama acidental. Nas suas cinco
narrativas a questão do tempo e da memória se atenua muito em relação à obra
anterior, mas a crueza se exacerba, especialmente na muito rude história que abre
o livro, descrição do ambiente de violência explícita que acabou por engolfar o
Rio de Janeiro, e isso numa realidade que nem chega a ser proletária, mas do
mais puro lumpesinato, aquele do onde toda a racionalidade parece irrecuperavelmente
perdida, se é que alguma vez existiu, ambiência, aliás, que – preconceito nosso
ou não – sempre nos pareceu de muito difícil aproveitamento estético, ao contrário
da primeira, a simplesmente proletária, em relação à qual não faltam exemplos
admirabilíssimos. No extremo oposto social, mas de igual crueza, é a segunda
narrativa, melancólica orgia de envelhecidos amigos de uma juventude perdida,
de uma libido igualmente perdida, ou reduzida ao seu nível mais baixo e
reificadoramente ostentatório ou consumista.
Com
Ladeira do Tempo-Foi, de 2017, Helio
Brasil volta ao romance, e a todas as características que já descrevemos: a
brilhante capacidade de descrição ambiental, a rica galeria de personagens, a
sensação da época, que não deixa de ser, implacavelmente e ao mesmo tempo, a
sensação da memória e da perda, da mudança
das coisas, no grande sentido camoniano da palavra. Por outro lado, nele se
exaspera o que reconhecemos como uma ascendência naturalista do autor, de
maneira mais forte do que nos títulos anteriores. Não há relação,
evidentemente, entre essa proximidade ao Naturalismo e a crueza em si, pois há
cruezas sem nada de naturalistas, mas no caso de Ladeira do Tempo-Foi a ligação estético-genealógica é indesmentível.
Tais sobrevivências permeiam, aliás, toda a história da arte, de todas as
artes, não apenas da literatura, e unicamente uma visão equivocada e superficial
pode explicar a incompreensão pejorativa da naturalidade do fenômeno.
Como
já afirmamos exaustivamente em outras circunstâncias, tais simplificações são nefastas
na percepção vulgar da literatura e das outras artes no Brasil, e não só nele.
A pior delas, sem dúvida, é fruto da ideologia do progresso, essa noção da
história e da Humanidade como uma superação perene que invadiu o Ocidente a
partir do século XVIII, do Iluminismo. Levada ao domínio da arte, tal
postulação é das mais desastrosas, criando a ilusão de que o mais recente é
sempre superior ao anterior, visão muito fortalecida pela vivência cotidiana do
capitalismo tecnológico que é a nossa, no qual, inclusive com certa
obsolescência programada, os bens de consumo se superam e se eliminam em
rapidez cada vez mais vertiginosa. A questão é que um romance, uma sinfonia,
uma pintura, uma catedral, não são computadores, celulares ou geladeiras, cada
vez mais rapidamente atropelados por seus congêneres da “última geração”. Só um
parvo julgaria que o Modernismo é intrinsecamente superior ao Romantismo, do
mesmo modo que esse seria superior ao Barroco, e assim por diante. Picasso não
é superior a Van Gogh, nem esse a Rembrandt, nem o próprio a Velázquez ou a Caravaggio,
por terem aparecido um depois do outro. A descoberta da perspectiva linear na
pintura da Renascença foi um elemento importante na sua aproximação a um certo
naturalismo, mas isso não a faz esteticamente superior à obra dos grandes
mosaístas bizantinos, já que essa aproximação aristotélica da percepção
realista da Natureza não é critério estético, pois, se o fosse, quase toda a magnífica
arte da África subsaariana seria carente de valor, a fotografia substituiria
completamente a pintura, e o nec plus
ultra desta seria o Hiper-realismo, o que, naturalmente, não acontece.
Esse
fenômeno, que sempre nomeamos como ilusão do privilégio da contemporaneidade,
se é filosoficamente absurdo, é criticamente desastroso. Nunca existiu homem
que não viveu na contemporaneidade, todo ser está condenado a viver nesse átimo
que é a atualidade, o único tempo que existe, e julgar que tal atualidade é
muito superior a outra é mais um resultado da ideologia do progresso sobre a
qual falamos. Muito mais lógica, em termos de estética, é a tradicional ideia
de um tempo cíclico, um eterno retorno entre o apogeu e a decadência, entre a
idade de ouro e a de ferro, que de fato rege a movimentação circular da
expressão artística. Ninguém, em sã consciência, poderia afirmar que a poesia
europeia do século XVIII, grande século para a música, foi superior à dos dois
séculos que o precederam e à dos dois que vieram depois dele. Possuirá a música
ocidental - referimo-nos especificamente à música erudita - deste início de
século XXI uma fração sequer da importância que ela teve nos séculos XVIII, XIX
e primeira metade do XX? E se falarmos da pintura e da escultura?
A
rigor, todo o ritmo da história da arte segue um movimento pendular entre uma
tendência mais racional, mais contida, mais fria, e outra de maior
desbordamento, de excesso, de utilização do irracional, ou seja, todas as
formas de Classicismo de um lado, do outro o Barroco, o Romantismo, o
Surrealismo, e assim por diante. Há duas estátuas, no Museu do Vaticano, que, a
pouca distância uma da outra, sintetizam à perfeição essas duas tendências, o
“Apolo de Belvedere” e o “Laocoonte e seus filhos”. Por outro lado, ambas essas
postulações podem ser contemporâneas, bastando lembrar, por exemplo, Machado de
Assis e Euclides da Cunha, ou Graciliano Ramos e Guimarães Rosa. Toda obra de
arte, quando plenamente realizada, vive num presente ubíquo, que é o tempo da
grande arte, das cavernas de Altamira, Lascaux e Chauvet até o momento em que
estas palavras são lidas. Nenhuma obra de arte envelhece, outro conceito pífio
e muitíssimo divulgado, a não ser em sua base física, no craquelé da pintura ou na degeneração química da película
cinematográfica. O que envelhece na obra de arte é o que nela não se converteu
em obra de arte, a escória cronológica e sociológica que não se transformou em
arte, numa obra parcialmente frustra. Tudo o que foi feito no passado e que
pretensamente “envelheceu”, já era ineficaz, obra de arte frustrada, no momento
mesmo de sua criação, e os seus contemporâneos de visão mais aguda ou limpa dos
preconceitos de época o puderam perfeitamente perceber. Tudo o que se faz hoje,
e que daqui a décadas dirão que “envelheceu”, já está, neste exato momento,
“envelhecido”, ou seja, traz elementos de época não transmudados na obra de
arte que aparecerão como “envelhecidos”, escandalosamente, dentro de umas
tantas décadas, mas que os contemporâneos mais atentos já percebem claramente
como tais. Todos esses conceitos que não querem dizer nada, bastante numerosos,
solapam muito do pensamento crítico no Brasil.
Desculpando-nos por essa longa digressão, que nos pareceu
necessária neste ensejo, voltamos a comentar o caráter naturalista da prosa de
Helio Brasil em Ladeira do Tempo-Foi.
A ligação amorosa do professor, protagonista do romance, com a pobre lavadeira que,
ao lado de seu filho inválido, aluga o porão habitável da respeitável
residência daquele – um dos fulcros do romance – assim como a sua descida até a
prostituição e à contingência do crime, traz, com todo o seu realismo
perfeitamente cabível e possível, uma forte ambiência especificamente
naturalista, que já detectáramos, mas de maneira mais sutil, na obra anterior
do autor. O humor, diga-se de passagem, não está de maneira alguma alijado
dessa narrativa, situada logo após o fim do nosso Estado Novo, de triste memória, como de
resto pode ser encontrado em toda a obra do ficcionista. A riqueza dos
personagens, da ambiência e da sensação soberana do tempo, acima de todo o
resto, é que dão origem ao que há de encantatório e profundamente humano na
obra de Helio Brasil, um desses escritores que nos leva à divagação – aliás
perfeitamente inútil – sobre que outras obras teriam saído de suas mãos, sendo
outra – e é aí que reside o absurdo - a sua contingência biográfica, pois a
interdependência entre todos esses fatores é, na verdade, obrigatória.
E agora, para terminar, só nos resta, a nós leitores, a
expectativa pelo seu próximo título.
Alexei Bueno
5-4-2018
Salve Helio Brasil, prodígio da literatura contemporânea & preciosa amizade! Quem não leu não sabe o que está perdendo.
ResponderExcluirMeu querido Helio Brasil, com quem convivi na minha infância e adolescência e que ajudou a construir o que sou hoje. Merece ser lido e divulgado. Uma grata surpresa nessa árida e ingrata seara das letras.
ResponderExcluir