O
VANDALISMO NO BRASIL: UM BREVE PANORAMA
O
conceito de patrimônio histórico-arquitetônico, o da sua evidentemente
necessária preservação, que tão óbvio nos parece na atualidade, integrado ao
senso comum de todos os povos, é, no entanto, impressionantemente tardio, mesmo
entre aqueles que se julgavam, em determinado momento — e muitas vezes com
justificadas razões — parte de uma espécie de vanguarda civilizatória.
Toda a cidade é uma constituição híbrida entre
paisagem natural, realização da mão do homem e perspectiva no tempo, ou
memória, aspecto híbrido, por sua vez, entre o tempo implacavelmente
desaparecido e seus marcos presentes ou ausentes para sempre. Trata-se de uma
equação que varia, de maneira drástica, de uma cidade para outra cidade, essa
base sociomaterial da civilização surgida, em suas manifestações mais
incipientes, há cerca de uma dezena de milênios, entre a Mesopotâmia e o Vale
do Indo. Uma cidade como Paris, por exemplo, obra máxima da criação urbana no
Ocidente, quase prescinde de uma base natural, exceção feita ao Sena, tão distante,
por afeiçoado pela obra humana, do que seria em sua forma primitiva, e da única
elevação mais significativa de Montmartre. No extremo oposto se situa o nosso
Rio de Janeiro, onde a magnificência natural não só se sobrepõe a qualquer
realização humana, como mantém com ela uma relação no mínimo conflituosa há
mais de quatro séculos e meio. A perspectiva temporal também varia radicalmente
entre as cidades, desde as bimilenares como Paris e Londres até aquelas que se
aprofundam na noite dos tempos, como Roma, Atenas ou Istambul. Em todas elas,
no entanto, desde a nossa relativamente jovem metrópole tropical de quatro
séculos até aqueles mais que lendários cenários da aventura humana, tal
perspectiva temporal enche os olhos dos moradores ou dos visitantes
historicamente conscientes de uma vasta fantasmagoria do que existiu,
sobreposta, como um persistente fantasma, ao que existe, e isso não só na
paisagem material como na mutabilíssima paisagem humana. Retornando a Paris, é
impossível ao caminhante ciente do passado não representar, perante a cour du Louvre, a imagem das Tulherias,
estupidamente destruídas uma década após o incêndio ateado pela Comuna, do
mesmo modo que, em relação a um monumento que sobrevive, a Coluna Vendôme,
reaparece a espantosa imagem da mesma espalhada pelo chão da praça, como um
salame fatiado, por ordem, aliás, do genial Courbet, durante aquele mesmo
conflito. Impossível também é não evocar o fantasma dos belos e turbulentos
pavilhões dos Halles de Balthar, em má hora destruídos, ao se atravessar o
plácido e anódino jardim do atual Forum des Halles. Como fitar, do mesmo modo,
os chafarizes coloniais ou do Reinado que se mantiveram no Rio de Janeiro, sem
evocar o caótico e ruidoso encontro dos escravos aguadeiros à volta deles, local
de uma compulsória sociabilidade tão bem evocada por alguns artistas viajantes,
com destaque para o maravilhoso Hildebrandt? Tais espetáculos da memória, como
já dissemos, são obviamente o privilégio de uns poucos, daqueles que cultivam a
proximidade com essa quarta dimensão de suas vidas ou de suas passagens.
Desde a sua descoberta pela expedição
de 1501, primeiro ano do século XVI, o Rio de Janeiro, com a sua esplêndida
baía, destacadamente no aspecto defensivo, entra no mapa dos choques de
interesses entre as duas potências ibéricas e os seus inimigos retardatários.
Fundada, na verdade, ao menos sob um certo ponto de vista, pelos franceses de
Villegaignon, em 1555, aos quais depois, contraditoriamente, se juntariam
calvinistas, num epifenômeno das Guerras de Religião, a verdadeira e
lusitaníssima São Sebastião do Rio de Janeiro será oficialmente fundada apenas
em 1º de março de 1565, no estreito terreno entre o Pão de Açúcar e o Morro
Cara de Cão, onde hoje se ergue a Fortaleza São João. Se os franceses pretenderam
haver fundado a sua Henriville, com algumas olarias e casas no bairro do
Flamengo — a linha do mar ficava onde hoje passa a Rua Senador Vergueiro — e as
fortificações, o Forte Coligny, na ilha de Serigipe, atual Ilha de
Villegaignon, sede da Escola Naval, muito perto do Aeroporto Santos Dumont,
nada, absolutamente nada de material, no sentido arquitetônico, sobreviveu
dessas duas ocupações. A exagerada intolerância de Villegaignon, e a ainda pior
dos huguenotes, que ameaçava castigar até com a pena de morte a fornicação
entre os seus soldados e as índias, foi facilmente vencida pela jubilosa
hipocrisia católica dos portugueses. Da França Antártica sobreviveram, grosso modo, a bela espada de execução
que se encontra no Museu Histórico Nacional, uma preciosa carta do punho de
Villegaignon que se conserva no Museu Naval, e diversos canhões de uma bateria
na Ilha da Laje, varridos pelo mar e até hoje nele sepultados, pois nunca os
reencontraram. Dois anos após a vitória, a cidade renasce — nasce, na verdade —
no Morro do Castelo, ou de São Januário, a futura acrópole assassinada do Rio
de Janeiro. Com a destruição do mesmo na década de 1920, sobrevivem hoje na
cidade dois monumentos ao menos iniciados no século XVI, o Convento do Carmo,
na Praça XV de Novembro, e o prédio velho da Santa Casa da Misericórdia, no
largo e ao lado da ladeira do mesmo nome, aí incluída a igreja de N. S. do
Bonsucesso, construída no primeiro século, mas com porta e janelas do século
XVIII, e uma sineira, acima do frontão triangular, da mesma época, bem com um
tardio interior oitocentista. Talvez o mais autêntico e melancólico testemunho
do Rio do Quinhentos seja, no fim das contas, o aclive de quarenta metros da
Ladeira da Misericórdia, rasgada em 1567 e calçada em 1616, o primeiro
logradouro da cidade, que a provável preguiça dos bárbaros da Belle Époque, aliada ao fato de nela se
escorar um dos anexos da santa Casa, permitiu que chegasse até nós. Como do
primeiro século pouco há a falar, faremos, antes de passar adiante, um muito
sintético e perfunctório histórico da luta entre o vandalismo e a preservação
no Brasil, com destaque, por motivos óbvios, para a cidade que nos interessa.
A história do vandalismo no Brasil —
onde um capítulo importante, como não poderia deixar de ser, cabe à segunda
capital, o Rio de Janeiro — estende-se, em seus momentos mais marcantes e numa
visão simplista, da última década do século XIX até a década de 1940. Não que
grandes perdas não se registrem depois, como demonstraremos, mas um declínio notável
da destruição histórica, ou um aumento equivalente da proteção, é marcado pela
criação do SPHAN, em 1937, assim como uma melhoria notável da conscientização
popular em relação ao tema pode ser percebida a partir dos anos de 1980.
São Paulo, que chegara à segunda metade
do século XIX ainda com a marcante feição urbana e arquitetônica da velha
Piratininga colonial, abre provavelmente o capítulo, com a demolição,
perfeitamente injustificada, em 1896, da igreja e do Colégio dos Jesuítas,
conjunto do início do século XVII, com remanescentes do século anterior, e
marco maior da história do nascimento da cidade. O trauma dessa desaparição
mostrará a sua força a partir da campanha, iniciada cerca de meio século
depois, pela reconstrução do monumento, o que acabará por se efetivar nos anos
de 1970, sob grandes protestos do IPHAN. Fato consumado, a restauração parcial
do Pátio do Colégio, dentro do qual se inserem um muro original de taipa de
sopapo — provavelmente quinhentista —, remanescentes dos retábulos do século
XVII e os fundamentos da igreja original, com seus enterramentos, sob uma laje
de concreto, parece hoje cumprir uma inegável função de marco afetivo na vida
paulistana, sem que nada se tenha perdido com a sua construção.
Igreja e colégio dos Jesuítas, São Paulo.
Menos de uma década depois, Pereira
Passos, o Haussman carioca, dá início na então Capital Federal ao célebre
bota-abaixo, usufruindo dos plenos poderes a ele outorgados por Rodrigues
Alves. A verdade é que essa imensa reformulação urbana do Rio de Janeiro, ao
contrário do que alguns pensam, só atingiu basicamente a arquitetura civil
residencial, raramente os grandes monumentos. Dentre estes, talvez o mais
notável tenha sido a igreja de São Joaquim, ao lado do prédio do Colégio Pedro
II, cuja demolição, em 1903, permitiu a união da Rua Estreita de São Joaquim
com a Rua Larga do mesmo nome, dando origem a atual Avenida Marechal Floriano,
ainda popularmente chamada Rua Larga por alguns.
Igreja de São Joaquim, Rio de Janeiro.
Desapareceu, na mesma época, o
Mercado da Glória, projetado por Grandjean de Montigny, no largo do mesmo nome,
que, sem nunca ter sido usado para as suas funções precípuas, havia-se
transformado num cortiço, bem ao estilo carioca. De um modo ou de outro, com
Passos ou não, acreditamos que desapareceria mais cedo ou mais tarde como todos
os antigos mercados da cidade, até o último com qualidade arquitetônica, o
imponente Mercado Municipal, em estrutura de ferro, inaugurado em 1908, e
destruído, na virada das décadas de 1950 a 1960, para a passagem do Elevado da
Perimetral, demolido por sua vez em 2013.
Mercado Municipal, Rio de Janeiro.
Alguns monumentos de importância
pouco depois demolidos, como o Convento da Ajuda, em 1911, ou o Chafariz da
Carioca, do mesmo arquiteto francês, em 1925, nada têm, obviamente com a ação
de Pereira Passos, pois a década de 1910 mudará o alvo da destruição para a
primeira capital, Salvador.
Convento da Ajuda, Rio de Janeiro.
Chafariz de Grandjean de Montigny, Largo da Carioca.
É com a conturbada posse de J. J.
Seabra como governador — na época presidente — da Bahia, em 1912, após
bombardeio da capital, que se inicia o período mais marcante de perdas de
monumentos arquitetônicos naquela cidade — que, por outro lado, é, de todas as
grandes metrópoles do Brasil, a que mais os conseguiu preservar — embora o
ponto culminante da destruição estivesse reservado para a tardia década de 1930. A abertura da Avenida
Sete de Setembro, no primeiro ano desse governo, redunda na destruição da muito
bela igreja de São Pedro e na mutilação parcial de outros edifícios coloniais,
embora o atentado máximo, a planejada demolição da igreja e do Mosteiro de São
Bento, magnífico ainda que inacabado conjunto seiscentista, tenha sido impedida
por forte reação popular. O Mosteiro de São Bento de Salvador foi salvo,
pode-se dizer, por sua envergadura arquitetônica e social, o mesmo que
acontecerá, três décadas depois, com a igreja da Candelária, no Rio de Janeiro.
Perda dolorosa e injustificada, entre todas, no mesmíssimo período, foi a da
igreja da Ajuda, construção quinhentista profundamente ligada à biografia do
Padre Vieira, posta abaixo para o alargamento uma rua, e substituída, em
terreno muito próximo do original, por um espúrio híbrido de neorromânico com
manuelino.
Igreja da Ajuda, Salvador.
À sua desaparição se soma, em 1913, a do Convento das Mercês. A se lamentar igualmente, nessa gestão, foi a
remodelação total do Palácio do Governo, rebatizado Rio Branco, que seria ainda
uma vez remodelado em 1919, até o estado atual, de um eclético dos mais
desgraciosos. Logo em seguida às destruições soteropolitanas ocorre, no Recife,
a demolição da magnífica Matriz do Corpo Santo, decidida em 1913 e executada no
ano seguinte, com o arrasamento de todo o entorno, inclusive do largo do mesmo
nome, um dos pontos mais históricos da capital pernambucana.
Matriz do Corpo Santo, Recife.
Na década de 1920 o epicentro do
vandalismo nacional — que por todo esse período nunca deixou de ser exercido na
capital paulista — retorna para o Rio de Janeiro. É sob o pretexto da exposição
comemorativa do Centenário da Independência, em 1922, que finalmente se dá
início ao criminoso arrasamento do Morro do Castelo, propugnado por modernosos
de vário calibre desde havia mais de um século. A administração Passos já
arrasara anteriormente o Morro do Senado, sem nenhuma importância histórica,
onde hoje se situa a Praça da Cruz Vermelha, assim como a década de 1950
assistirá ao arrasamento do Morro de Santo Antônio, porém poupando a única
construção notável nele situada, o Convento de Santo Antônio, bem como
preservando um pequena falda do morro onde vinha dar, partindo de Santa Teresa,
o aqueduto da Carioca. O que é notável na destruição do Morro do Castelo é o
fato de ela, além de incrivelmente tardia, não se limitar a um monumento, mas a
um conjunto inapreciável deles. Não se trata da destruição do edifício
primacial de uma metrópole, como no caso do Colégio de São Paulo, mas do
próprio acidente geográfico onde se dera a verdadeira fundação, fato único na
histórica, afirmamos, plagiando Euclides da Cunha. Toda uma acrópole
quinhentista portuguesa, com duas igrejas e um forte do século XVI — em outras
palavras, a matriz de São Sebastião, ou Sé Velha do Rio de Janeiro, a igreja e
o convento dos jesuítas, o “castelo”, ou fortaleza que dera nome ao morro — sem
contar as majestosas ruínas da inacabada igreja nova dos jesuítas, fontes,
obras de arquitetura civil de todos os séculos da cidade, e o inteiro
arruamento original, três ladeiras convergindo para uma única praça, veio
abaixo a força de jatos d’água, sem o menor cuidado nem na salvação de algumas
cantarias do maior valor, resultando numa das séries de fotografias mais
impressionantes do século XX no capítulo da barbárie histórico-arquitetônica.
Protagonizado pelo então prefeito da Capital Federal, Carlos Sampaio, que havia
quatro décadas tentava cometer tal insensatez, e pelo Presidente da República,
Epitácio Pessoa — tudo envolto em imenso gasto de dinheiro público e suspeitas de
corrupção, como sempre —, esse atentado à mais ínfima sensibilidade histórica
foi apoiado com denodo por muitos periódicos e mentes “progressistas”, e
duramente criticado por alguns raros indivíduos de bom senso, como Lima Barreto
e Monteiro Lobato.
Sé Velha do Morro do Castelo, em demolição.
Igreja e convento dos Jesuítas, no Morro do Castelo.
Mal comparando, seria como se a
municipalidade de Atenas resolvesse arrasar a Acrópole para aumentar a
ventilação da cidade e criar um bairro novo, ou a de Paris afundasse a Île de
la Cité no Sena para facilitar a navegação. A falta de qualquer preocupação
maior no salvamento do que fosse possível transpira das fotografias, onde
podemos ver solidíssimos edifícios, como a igreja dos jesuítas e o antigo
convento, com seus poderosos contrafortes, inclinarem-se à beira do abismo,
ainda com as bandeiras das janelas, como se fossem casas de bonecas ou
brinquedos. Se até hoje o Rio de Janeiro se ressente de não ter nenhum
monumento inscrito na conhecida lista de Patrimônios da Humanidade da Unesco —
exceção feita à vaga categoria de “paisagem cultural” — deve-o a esse ato
lamentável, pois, sem qualquer dúvida, nela estaria inscrito o conjunto
arquitetônico e urbanístico do Morro do Castelo, ao lado, por exemplo — sob o
aspecto do parentesco histórico, no caso a expansão colonial lusitana — daquele
da Ilha de Moçambique, que lá se encontra devidamente arrolada.
Salvaram-se do desastre os ossos do
fundador, Estácio de Sá, que já em 1862 haviam sido exumados e reenterrados,
numa dupla urna de chumbo e pau-brasil, na presença de D. Pedro II, assim como
a magnífica lápide de seu segundo enterramento, de 1583, talhada em mármore de
lioz. Da mesma Sé Velha, que sofrera certa adulteração — um injustificável
soerguimento do frontão — em meados do século XIX, salvaram-se igualmente a
imagem original do padroeiro da cidade e o chamado marco de fundação, que se
encontrava no exterior do templo, junto a um dos cunhais. Essas três relíquias
únicas se conservam atualmente na feíssima igreja neobizantina dos Capuchinhos,
no bairro da Tijuca.
Da fortaleza nada sobreviveu, nem o
belíssimo pórtico. Da igreja dos jesuítas foram conservados um altar central e
três laterais, com as suas respectivas imagens, assim como um púlpito. São os
mais antigos retábulos da cidade, do final do Quinhentos, hoje conservados na
igreja de N. S. do Bonsucesso, da Santa Casa da Misericórdia. No local onde
esse conjunto precioso existiu, e ao qual se chegava, a partir da mesma Santa
Casa, por um pequeno trecho da Ladeira da Misericórdia, nada foi, na verdade,
construído até hoje, correspondendo a área, aproximadamente, à da Praça dos
Expedicionários, até poucos anos uma das mais abandonadas e degradadas do
centro da cidade, tendo ao centro um monumento ao Barão do Rio Branco. Da
monumental igreja nova dos jesuítas, inacabada por causa da expulsão dos
mesmos, sobreviveu um precioso conjunto escultórico setecentista português do
Cristo crucificado entre N. S. das Dores e São João Evangelista, em tamanho
maior do que o natural, que ficaria no altar-mor. Tal conjunto, uma das
obras-primas da estatuária sacra existente no Brasil, conserva-se no hall do edifício novo do Colégio Santo
Inácio, em Botafogo. Na
fachada da igreja do mesmo colégio há algumas portas, janelas e capitéis em
lioz retirados da mesma igreja inacabada, que depois abrigou por muitos anos o
Observatório Nacional, espantosamente recobertos por tinta. Finalmente, nos
jardins de um dos prédios da UFRJ, na Ilha do Fundão, podem ser vistos,
espalhados ao ar livre, alguns monumentais capitéis, cunhais e outras partes em
cantaria de lioz retirados do mesmo edifício. O fecho dessa década, no entanto,
acontece em Pernambuco, onde o proprietário da casa-grande do Engenho Megaípe,
construção acastelada sem igual no Brasil, originária do século XVII, a mandou
destruir da noite para o dia, ao saber de uma pioneira lei para preservação de
monumentos que seria votada no Estado, com o engenho em lugar de destaque na
lista prévia de edifícios a classificar.
Engenho Megaípe, Jaboatão dos Guararapes.
Consumada a barbárie carioca, uma
década depois o episódio mais lamentável dessa pequena crônica do vandalismo
retoma como cenário a capital baiana. Instigada por uma concessionária de
bondes urbanos, a municipalidade de Salvador, em conluio com a Cúria
Metropolitana, lança o inacreditável projeto da demolição da Sé, a Sé Primacial
do Brasil, de origens quinhentistas e monumental fachada seiscentista, onde se
encontrava, em meio a relíquias de toda ordem, muitos túmulos do primeiro
século, inclusive os de todos os primeiros prelados soteropolitanos. Construída
à beira de uma falésia, sua fachada original, toda esculpida em cantaria de
pedra, que conhecemos por desenhos, teve que ser parcialmente desmontada no
final do século XVIII, assim como as sineiras das torres, pois o excesso de
peso ameaçava afundar o terreno. Restavam, na fachada frontal e lateral, as
magníficas portas do século XVII. Um passadiço ligava o mais que venerando
templo ao Palácio Episcopal. Como sempre, teve início a polêmica, com esforços
literalmente heroicos de alguns homens para impedir o crime, até com abaixo-assinados
e livros publicados, com destaque para um simples professor, Manuel Mesquita
dos Santos, autor do livro-panfleto A Sé
Primacial do Brasil. Nada adiantou, e em pleno ano de 1933, vinha abaixo —
mais uma vez sem o menor cuidado, mais uma vez sem nem ao menos poupar os
preciosíssimos portais de cantaria, que poderiam ter sido desmontados, mas
foram reduzidos a pó a força de picaretas — a Sé Primacial do país, junto com
dois quarteirões que continham alguns notáveis solares seiscentistas, e tudo
isso para abrir caminho para uma linha de bondes. Por sorte, o grande
Governador-geral do Brasil, Mem de Sá, havia sido enterrado na igreja dos
jesuítas, que ajudara a construir, a magnífica Catedral Basílica que já havia
muito assumira a função de Sé, pois se tivesse sido inumado, como seria mais
natural, na Sé Velha, seus ossos sofreriam o mesmo destino dos de seu heroico
sobrinho, fundador do Rio de Janeiro, e tudo em pleno século XX.
Vista lateral da Sé de Salvador.
Tais crimes,
na verdade, permanecem como traumas irreparáveis nas mentes dos elementos
cultos das populações das cidades que os sofreram, o que é o caso do Morro do
Castelo para o Rio de Janeiro, da Sé para Salvador ou da antiga Catedral para
Cuiabá, apenas como exemplo.
Para terminar essa década de 1930 é
necessário, no entanto, voltar à Capital Federal. Em seu início, vale registrar
a perda, sempre lamentável, do antigo Recolhimento do Parto, na que é hoje a
Rua Rodrigo Silva. Em 1937, ano mesmo da criação do SPHAN, a União mandou
demolir o prédio da antiga Academia Real de Belas Artes, talvez o mais belo
projeto de Grandjean de Montigny, já havia tempo, desde a sua transferência
para a nova sede na Avenida Central, abrigando o Ministério da Fazenda — ao
lado, aliás, do antigo prédio do Tesouro Nacional — para em seu terreno ser
erguido o novo edifício daquele Ministério. Mal terminada a demolição, num
episódio próximo ao ridículo, resolveram erguer o edifício do Ministério na
Avenida Antônio Carlos, onde permanece, ficando o imenso terreno da Academia de
Belas Artes transformado — até hoje, oitenta anos depois — em estacionamento.
Num sinal claro de mudança de mentalidade, o magnífico pórtico neoclássico em gneiss carioca foi comprado pelo SPHAN
da firma demolidora, e remontado no final de uma aleia do Jardim Botânico, onde
nos dá uma ideia da beleza e do requinte da construção desaparecida. Em relação
ao que foi feito no Morro do Castelo, quinze anos antes, houve um inequívoco
progresso de sensibilidade.
Academia Real de Belas Artes, Rio de Janeiro.
Na década de 1940 continuamos no Rio de
Janeiro. Em plena ditadura do Estado Novo — a mesma que, em boa hora, criara o
SPHAN em 1937, como já dissemos, sob a inspiração de Mário de Andrade e ação
direta de Rodrigo de Melo Franco, embora só no ano seguinte se tenham efetivado
os primeiros tombamentos — entra em ação a odiosa figura do “destombamento”,
que terá próspera descendência. No interior do Estado do Rio de janeiro, sob o
pretexto da necessidade da ampliação do reservatório de Ribeirão das Lajes, em
pleno período da Guerra, para suprir a capital Federal de suficiente energia
elétrica, é destombada e em seguida dinamitada a belíssima cidade de São João
Marcos, marco histórico da cultura cafeeira na província fluminense, verdadeira
joia arquitetônica encravada numa das mais belas regiões de todo o Estado. Uma
vez destruída a cidadezinha pela Ligth and Power — o famoso “Polvo Canadense” —
e elevado o nível do reservatório, constatou-se que a inundação havia sido
apenas parcial, e que haveria possibilidade de, com algumas poucas obras de
barrragem, preservar aquele maravilhoso núcleo urbano da passagem do século
XVIII para o XIX. As perdas mais dolorosas aconteceriam, no entanto, na própria
capital, com a abertura, com traçado implacavelmente retilíneo, da Avenida
Presidente Vargas, belo exemplo do típico urbanismo fascista — em tudo
semelhante, aliás, ao comunista — apesar dos insistentes apelos do SPHAN para a
aceitação de um traçado opcional. Sem falar de alguns prédios públicos
importantes e de uma larga faixa do jardim do Campo de Santana, a avenida
provocou a demolição de uma igreja do início do século XVIII, mas de feição
ainda seiscentista, a de São Domingos, de outra do mesmo século, a do Bom Jesus
do Calvário, e finalmente de uma obra-prima da arquitetura religiosa colonial
brasileira sem igual no Rio ou no Brasil, além de templo historicíssimo, a
igreja borromínica de São Pedro dos Clérigos, da década de 1730. Seria difícil
dizer o que mais admirar nesse pequeno tempo, se o seu traçado todo curvilíneo,
se a magnificência do seu interior, todo entalhado pelo Mestre Valentim, se a
sua importância na história da cidade. Foi proposta, na ocasião, a sua mudança
para a margem da nova avenida, por inteiro, tecnologia mais do que conhecida
naquela primeira metade da década de 1940, tendo em vista que, nos Estados
Unidos, desde a primeira década do século se transferiam edifícios inteiros com
até mais de dez andares. Sem apelar para essa tecnologia, o templo poderia
perfeitamente ter sido desmontado e remontado à beira da avenida, tal qual, só
como exemplo, foi feito em 1911, em Lisboa, com a igreja de N. S. dos Anjos,
para a abertura da Avenida Almirante Reis. Lá se encontra até hoje essa bela
igreja quinhentista, que nem o mais experimentado olhar arquitetônico
imaginaria haver sido desmontada e reconstruída, não fosse a placa comemorativa
desse evento. Pois nenhuma dessas soluções, por haverem sido consideradas
dispendiosas, foi utilizada pelo então prefeito da capital, homem de conhecida
insensibilidade histórica, Henrique Dodsworth, e a igreja veio abaixo. Seu
magnífico portal em excelente cantaria, esse ao menos foi preservado e
remontado, com a sua curvatura já sem finalidade, na nova igreja de São Pedro,
templo sem nenhum estilo, no bairro do Rio Comprido, ao lado da Casa do Bispo,
da traça do Brigadeiro Alpoim. Desse modo, sob o asfalto da Avenida Presidente
Vargas, sob a incessante passagem dos ônibus e outros veículos, jazem os ossos
do grande compositor Padre José Maurício Nunes Garcia, sepultado naquele
templo. A Avenida, por fim, se revelou uma necessidade viária — função que em
nada seria prejudicada com o projeto proposto pelo SPHAN — e um quase fracasso
urbanístico, tendo em vista que os edifícios do seu lado esquerdo não chegaram
nem ao Campo de Santana, e os do seu lado direito mal passaram da Rua
Uruguaiana, a não ser muito recentemente. A maior parte da extensão da Avenida
Presidente Vargas é, até hoje, ocupada por estacionamentos e terrenos vagos,
com o decaído fundo do casario das ruas paralelas à mostra.
Igreja do Bom Jesus do Calvário, Rio de Janeiro.
Igreja de São Domingos, Rio de Janeiro.
Igreja de São Pedro dos Clérigos, Rio de Janeiro.
A partir dessa data, as destruições do
patrimônio arquitetônico morfologicamente colonial ou neoclássico decaem
bastante, enquanto começa a ficar perceptível uma espécie de décalage da visão preservacionista em
relação a estilos considerados espúrios ou destituídos de qualquer interesse,
como o Eclético, o Art Nouveau ou o
Neocolonial, embora ainda possamos registrar, no mais que tardio ano de 1968, a
demolição a dinamite da preciosa matriz de Cuiabá, magnífica igreja de origem
bandeirista, com numerosos e ricos altares, que não fora tombada, provavelmente
pelos preciosismos do IPHAN, pois sofrera algumas alterações facilmente
sanáveis na fachada, no coroamento de uma de suas torres e com a construção de
uma torre nova, simétrica à primeira.
Catedral de Cuiabá.
Em seu lugar, no histórico solo em que
estava enterrado Pascoal Moreira Cabral, foi erguida a nova catedral, de um mau
gosto acima de qualquer descrição. No Rio de Janeiro, o desinteresse pelos
estilos mencionados levou à perda do incomparável edifício do Elixir Nogueira,
no bairro da Glória, de autoria de Antonio Virzi, assim como, pouco depois, do
Palacete Martinelli, do mesmo arquiteto, exemplar que se aproximava da
arquitetura fantástica, amontoamento delirante de todos os estilos de todas as
civilizações. Embora fosse edifício sem similar no Brasil — seu luxo delirante
foi usado como cenário em dois dos maiores filmes do cinema brasileiro, Ganga Bruta, de Humberto Mauro, e Terra em Transe, de Glauber Rocha, com
mais de três décadas de distância — o IPHAN se negou a lhe reconhecer qualquer
interesse maior, nacional, de acordo com ofício do seu então presidente Renato
Soeiro, alegando uma juridicamente falsa necessidade de desapropriação, que,
como qualquer um sabe, nada tem a ver com a figura do tombamento, nem o
poderia.
Elixir Nogueira, Rio de Janeiro. Cartão postal.
Palacete Martinelli, Rio de Janeiro.
Ainda na mesma década de 1970, perdeu o Rio de Janeiro o melhor
exemplar de residência neocolonial da cidade e do país, o assim denominado
Solar de Monjope, de José Mariano Filho, propugnador do movimento.
Solar de Monjope, Rio de Janeiro.
Em parecer
do IPHAN, Lúcio Costa chama-o de falsificação da casa brasileira, para depois,
com grande bom-senso, recomendar a sua classificação em nível estadual. Ora, o
Neocolonial nunca se propôs a reproduzir a autêntica casa brasileira, como já
diz o “neo” da denominação, sendo antes um hibridismo de elementos portugueses,
espanhóis e do colonial brasileiro e hispano-americano. Se era realmente
abominável a “neocolonalização” de monumentos verdadeiramente coloniais, como
foi feito no edifício do antigo Arsenal de Guerra e na Casa do Trem, durante a
exposição de 1922, futura sede do Museu Histórico Nacional, enquanto ao lado se
destruía o mais valioso colonial autêntico com a derrubada do Morro do Castelo;
como foi feito no Paço Imperial, na malfadada reforma do governo Washington
Luís, em que lhe coroaram o terceiro andar frontal com um ridículo frontão
naquele estilo; como foi feito na fachada da igreja do convento de Santo
Antônio, por um lamentável “frei-arquiteto”, em finais da década de 1920, a obra total e
puramente neocolonial, como o extinto Solar de Monjope, como o preservado
Instituto de Educação, eram marcos de um gosto e de uma época, admiremo-los ou
não, situando-nos nós, pessoalmente, mais para o segundo caso. Em boa hora,
aliás, o IPHAN “desneocolonizou” parcialmente o antigo Arsenal de Guerra e
completamente o Paço Imperial, suprimindo tais acréscimos ridículos, e
finalmente, ainda que em obra inacabada, a igreja de Santo Antônio, igreja de
1608, que nada de barroco tinha na fachada, com a exceção das três portas de
lioz nela colocadas no século XVIII, no local da galilé original, e que até
esta obra muito recente continuava com o grotesco frontão neocolonial elevado,
com as vergas das três janelas, que eram obviamente retas, em arco abatido, e
sem a linha da cimalha, também arrancada da magnífica igreja anexa da Ordem
Terceira de São Francisco da Penitência. Enquanto essas alterações espúrias não
forem totalmente desfeitas — e o material fotográfico do estado original dos
templos é imenso — o valioso conjunto conventual franciscano permanecerá
implacavelmente adulterado. Curiosamente, o mesmo Lúcio Costa que chamou de
“elaborada cenografia” o Solar de Monjope, no já lembrado parecer, foi o autor
do projeto, elegante aliás, que transformou o cinema de Ouro Preto, pequeno
edifício eclético, num simulacro meio colonial, meio neoclássico. Essa
“colonialização” de um prédio eclético está talvez mais perto de uma
“cenografia” do que o desaparecido Solar de Monjope. Quanto a restituições
fáceis, necessárias e com sobeja documentação prévia, o que as dificulta é,
geralmente, por parte de alguns arquitetos, uma leitura destituída de qualquer
bom-senso da famosa “Carta de Veneza”, quando não de todo indefensável.
O mesmo IPHAN que recuperou
brilhantemente, com a retirada desses empastelamentos, o Convento do Carmo do
Rio de Janeiro, a Sé de Olinda, o já mencionado Paço Imperial, a valiosa igreja
de N. S. do Rosário de Cuiabá — que havia sido goticizada, tal como a primeira
— manteve, na recente restauração da igreja do Carmo, a antiga Catedral
Metropolitana do Rio de Janeiro — talvez o templo historicamente mais importante
do Brasil — as abomináveis reformas do Cardeal Arcoverde, na parte superior da
fachada e na injustificável torre em estilo barroco italiano, que substituiu o
poderoso e maciço campanário seiscentista original. Novamente havia material
fotográfico exaustivo, de todos os ângulos imagináveis, do estado anterior da
igreja, mas as adulterações foram mantidas, provavelmente, como já dissemos,
por uma leitura extremada da “Carta de Veneza”, como se edifícios do Setecentos
ou do Oitocentos adulterados no século XX fossem exemplares de arquitetura
romana com acréscimos bizantinos, ou templos românicos com elementos góticos.
Curiosamente, em recente restauração da igreja jesuítica de N. S. da Assunção,
em Anchieta, no Espírito Santo, tão ligada à vida do padre do mesmo nome, hoje
santo, a harmoniosa e singela fachada do século XVIII, com duas janelas, foi
refeita — apenas por prospecções, sem absolutamente nenhuma iconografia — em
seu provável estilo jesuítico inicial, com apenas uma janela ao centro e duas ladeando
a portada, o que nos parece bastante defensável e realizado com muita
seriedade. Mas qual critério, afinal, norteia tantas contradições?
Faltou talvez ao IPHAN, a partir da
década de 1960, em nossa opinião, o que poderíamos chamar de uma posição “profilática”,
evitar a desaparição — sempre irreversível — de construções geralmente julgadas
com pouco ou nenhum interesse pela presente geração, mas que sem dúvida se
tornariam importantes para o olhar destituído de certos preconceitos da geração
seguinte. Outro equívoco de maus resultados foi o purismo exagerado, o deixar
de classificar monumentos importantíssimos por terem eles sofrido tal ou qual
alteração, muitas vezes facilmente sanáveis, levando-os por fim à destruição.
Exemplo notável dessa atitude está na “tombamento parcial” da casa natal do
Senador Nabuco de Araújo, o pai de Joaquim Nabuco, na Avenida Sete de Setembro,
em Salvador, magnífico solar do século XVII, com um terceiro andar com varanda
e vãos em arco pleno, obviamente com feição do século XIX, e um moderno vão de
loja rasgado no térreo. Pois apenas por causa desse vão descaracterizador,
facilmente reversível, e do último andar reformado no século XIX, em muito bom
estilo do mesmo, o que seria inclusive um documento interessante da adaptação
de residências senhoriais baianas nesse período entre dois séculos, o
tombamento realizado restringiu-se aos seguintes elementos, texto copiado
fielmente do livro de tombo: “no térreo, portada nobre de pedra lavrada, com
sua respectiva folha, pregaria e demais peças; duas portas de madeira no
interior do saguão, ambas com bandeiras de ferro e uma delas com verga e
ombreira de madeira. No primeiro pavimento: grade divisória de cômodo, em
madeira recortada, servindo de vedação ao arco abaulado, entre o hall superior e a sala interna, folha da
porta de acesso do salão principal; folha do armário da porta do corredor. No
segundo pavimento: folhas de quatro portas com suas respectivas ombreiras e vergas, uma delas ostentando espelho de fechadura, folhas de duas
janelas, com postigos, na sala de jantar”.
Resultado
dessa obra-prima do purismo exacerbado, a casa, que era inclusive uma casa
histórica, foi demolida, já que só haviam sido tombados os “elementos
decorativos”, que devem estar por aí, espalhados aos quatro pontos cardeais,
alijados pra sempre da totalidade do seu contexto original. Quem se der ao
trabalho de ler o Guia dos bens tombados:
Bahia, lá encontrará, no item “Estado atual” referente a esta construção,
laconicamente, a palavra “demolida”. O parecer de Lúcio Costa, ainda mais
perfunctório, recomendava o tombamento exclusivo da portada. Semelhante
salvaguarda de detalhes foi igualmente proposta para o belo solar neoclássico —
nunca tombado e finalmente destruído — que se situava à Praça Condessa de
Frontin, 52, no Rio de Janeiro.
Outro aspecto a ser meditado era o
quase constante desinteresse do IPHAN pelas “casas históricas”, “casas de
grandes homens”, explicitamente revelado nesse curioso parecer do mesmo Lúcio
Costa para o tombamento da casa de Graciliano Ramos, em Palmeira dos Índios,
muitas vezes chamada de “casa natal”, embora o escritor tenha nascido em
Quebrangulo:
“Sou, em princípio, contrário ao
tombamento de casas vinculadas a personalidades, porque a preservação desses
lugares quase sempre resulta meio falsa e melancólica.”
Afirmação mais vaga e subjetiva é impossível, e
chega a ser espantosa vinda de um homem de sólida formação europeia como foi o
grande arquiteto. Tal visão, no fim das contas, foi que norteou a triste
destruição do solar do Duque de Caxias, com seu belo jardim, na Rua Conde de
Bonfim, no bairro da Tijuca, em 1980, curiosamente ainda em pleno governo
militar, assim como a de tantas outras residências históricas. Se no Chile,
entre Santiago e Valparaíso, conservam-se três casas-museus de Pablo Neruda, no
Rio de Janeiro nada se salvou para um Machado de Assis.
Casa de Machado de Assis, na Rua Cosme Velho.
No campo literário,
para nele nos mantermos, só nos lembramos de dois casos de classificação
federal de construções sem valor arquitetônico apenas por sua importância
histórica, a já lembrada casa de Graciliano Ramos e a barraquinha de madeira e
zinco na qual Euclides da Cunha escreveu parte de Os sertões, em São José do Rio Pardo, São Paulo.
Caso à parte, nos meados da década de
1970, foi a destruição do Palácio Monroe, cuja silhueta tanto marcava a
paisagem carioca num dos seus sítios mais destacados. Obra do engenheiro e
arquiteto Coronel Francisco Marcelino de Sousa Aguiar, foi projetado para ser o
Pavilhão do Brasil na Exposição Universal de 1904, em Saint Louis, nos Estados
Unidos, ocasião em que recebeu a medalha de ouro do Grande Prêmio Mundial de
Arquitetura, sendo transferido e remontado na então Capital Federal dois anos
depois, para sediar a III Conferência Pan-americana. Nesse caso, o fato de o
prédio ter abrigado por anos o Senado Federal aumentava a impressão de puro
vandalismo. Tal decisão foi, no entanto, de responsabilidade direta do então
presidente Ernesto Geisel, o mesmo que, paradoxalmente, impediu a destruição do
Copacabana Palace. São episódios típicos de um período ditatorial, entre os
quais se inclui o destombamento e a demolição da igreja dos Martírios, no
Recife, em 1973, mais uma vez para a abertura de uma avenida — tal qual havia
sido permitida, vinte anos antes, na mesma cidade e em período democrático, a
destruição parcial, pela Marinha, do Forte do Buraco.
Igreja dos Martírios, Recife.
A demolição do Monroe,
por “inservível”, foi orquestrada e defendida radicalmente pelo jornal O Globo, grande acólito da Ditadura, com
pleno apoio de Lúcio Costa, e acabou por se transformar em mais uma daquelas já
mencionadas memórias traumáticas para a população carioca. Hoje, quando a
Biblioteca Nacional necessita urgentemente de um anexo, o edifício do antigo
Senado Federal poderia perfeitamente servir para essa função, inclusive com uma
nada complexa ligação subterrânea entre os dois prédios, mas já que
“inservível” o julgou o General Golbery do Couto e Silva, por ordem expressa de
seu chefe, como inservível ele desapareceu.
Palácio Monroe, Rio de Janeiro.
Também na passagem da década de 1960
para 1970 o Rio de Janeiro assistiu à demolição de todo o centro do bairro da
Lapa, por projeto de Lúcio Costa, entre outros motivos para “abrir vista” para
o aqueduto, os célebres Arcos da Carioca. De fato, o aqueduto não proporcionava
mais uma visão de conjunto, como no famoso quadro oval de Leandro Joaquim, mas
quando uma parte dele se erguia sobre o casario próximo — o mesmo caso das
catedrais europeias da Idade Média —, esse trecho apresentava, aos olhos do
passante, uma escala monumental e uma surpresa que o vazio à sua volta fizeram
desaparecer. O pretexto de “abrir vista” teria próspera descendência, e é
curioso imaginá-lo em uso numa cidade como Roma, que poderia ser toda posta
abaixo para “abrir vista” para os monumentos, até que só restasse um com uma
vista de 360º, o mesmo caso de Paris. O projeto original da Lapa, felizmente
nunca realizado, incluía a demolição de todo o casario do Largo e do início da
Avenida Mem de Sá, aí incluídos a Sala Cecília Meireles, o antigo Hotel
Bragança, etc. Em 1977 foi a vez do prefeito Marcos Tamoyo — que mereceria
figurar com honra na galeria dos Sampaios e dos Dodsworths — lançar o projeto
de demolição de todo o lado esquerdo da Rua da Carioca, ou seja, de todo o
conjunto neoclássico, da década de 1870, das casas pertencentes à Ordem
Terceira de São Francisco da Penitência, do Bar Luiz — a última delas, mas com
fachada posterior art déco — do
belíssimo e tão mal utilizado Cinema Íris, e tudo mais. O pretexto, dessa vez,
era “abrir vista” para o Convento de Santo Antônio — na verdade a lateral da
Ordem Terceira — pelo qual o prefeito se tomara de súbito e violento amor. Uma
forte reação popular impediu tal estupidez, e temos orgulho de que a primeira
carta a sair na imprensa em protesto contra o projeto, no caso no Jornal do Brasil, tenha sido escrita por
nós, então aos 14 anos de idade. É notável, aliás, o número de conjuntos
arquitetônicos que foram preservados no centro do Rio por pertencerem a alguma
Ordem ou Irmandade, como é o caso da carreira de casas da Ordem Terceira na Rua
da Carioca, de que acabamos de falar, do casario do Largo de São Francisco da
Prainha, da mesma Ordem, ou de toda a carreira de casas pertencentes à
Irmandade da Santa Cruz dos Militares, entre o fundo dessa igreja e o mar, na
Rua do Ouvidor. Ainda um caso de demolição para “abrir vista”, na década de
1970, foi o do antigo edifício do Ministério de Agricultura, originalmente
Pavilhão das Indústrias da Exposição de 1922, que se erguia bem em frente do
precioso conjunto colonial da Santa Casa da Misericórdia, à esquerda do qual o
que restou Ladeira da Misericórdia termina melancolicamente no vazio.
Popularmente conhecido como “Bolo de Noiva” não era prédio de maior mérito
arquitetônico, ainda que a sua cúpula vazada tivesse certa imponência quando
vista de alguns ângulos do centro da cidade.
O período entre as décadas de 1970 e
1980 deu igualmente ensejo, no Rio de Janeiro, a grandes destruições da
arquitetura civil por causa das obras do Metrô, que nos países civilizados
comumente passam abaixo dos prédios, mas que nos terrenos arenosos ou
aluvionários do Rio de Janeiro têm por hábito demolir tudo o que se encontra em
cima, necessariamente ou não. Foi o que ocorreu com o belo edifício do Correio
da Tijuca, bairro, aliás, que perdeu, na década de 1980, três ou quatro
casarões verdadeiramente preciosos, de um período ainda quase rural, perante o
silêncio perfeitamente desinteressado dos seus habitantes.
Se o mais antigo momento de que nos
lembramos em que o senso da preservação aparece na humanidade foi o dia em que
Alexandre, o Grande, dando ordens para a destruição total de Tebas, ordena que
seja poupada unicamente a casa em que vivera Píndaro, a verdade é que a
concepção ideológica de patrimônio sempre foi obra de intelectuais, desde os
beneméritos que corajosamente salvaram relíquias de imenso valor em pleno
furacão da Revolução Francesa, até os escritores que consolidaram a ideia no
século XIX, de Prosper Merimée a Victor Hugo, o único homem que, graças ao seu
prestígio universal, conseguiu, com um bilhete, que as recém-descobertas Arenas
da Lutécia não tivessem sido destruídas para dar espaço a uma garagem de
ônibus. Quanto a Prosper Merimée, secundado nessa ação por Viollet-le-Duc, não
podemos esquecer que foi o salvador das incomparáveis muralhas de Carcassone,
cuja demolição fora oficialmente decretada em 1850, o hoje que chega a ser
difícil de acreditar. No Brasil o processo não foi diverso, já que o primeiro
relator da lei que criava o SPHAN foi Mário de Andrade, e o seu grande diretor
na fase heroica foi o também intelectual e escritor Rodrigo Melo Franco de
Andrade. A partir dos anos de 1970 assistimos a uma crescente tecnicização do
Patrimônio — na verdade de todas as relações sociais — cada vez mais na mão
exclusiva de arquitetos. Há arquitetos e arquitetos, e inclusive alguns dos
maiores criadores do Internacional Style
no século XX, às vezes homens geniais, eram destituídos do mais ínfimo senso de
preservação, a começar pelo pai de todos, Le Corbusier, autor da mais que
conhecida planta da remodelação de Paris, onde quase toda a cidade, com a
exceção da Île de la Cité, era substituída por conjuntos de arranha-céus em
centro de terreno, muito parecidos com os da nossa Barra da Tijuca, o que
dispensa comentários. É célebre a frase de Clemenceau: “La guerre est une chose trop sérieuse pour
la laisser faire par des militaires”. Poderíamos repeti-la, com as grandes e honrosas
exceções de sempre, na equação patrimônio histórico e arquitetos. Se pensarmos na história da crítica de arte, constataremos que os seus
grandes nomes, de Winckelmann a Apollinaire, de Baudelaire a Ruskin, de
Huysmans a Panofsky, não foram artistas plásticos, mas homens dedicados a
outras artes ou simplesmente intelectuais.
Na verdade, como em todas as atividades humanas,
essa força imponderável, a moda, os modismos, os maneirismos, conduz a dança.
Até 1970, por exemplo, tínhamos “museus”, depois vieram os “espaços”, em
seguida os “centros de referência”, e no momento em que são escritas estas
linhas dominam as bastante ridículas “ocupações”. A partir de certa época passou a ser de bom
tom, no caso de velhas edificações onde o interior havia caído em ruínas,
construir um corpo recuado, deixando a fachada solta e isolada, quando a coisa
mais fácil e lógica seria refazer os telhados e os pisos, e assim a volumetria
e a totalidade do original. Exemplo medonho de tal modismo encontramos nos os
dois sobrados da segunda metade do XIX, pertencentes à Escola de Música da
UFRJ, ao lado da Sala Cecília Meireles, no Rio de Janeiro. E isso para dar um
certo ar de “autenticidade”, em edifícios cujo valor reside quase que apenas no
conjunto em que se encontram, e dos quais as técnicas construtivas são
conhecidas à exaustão. Proposta semelhante é a que tem sido veiculada para o
Solar do Visconde de São Lourenço, caído em ruínas — ou, melhor dizendo,
voluntariamente demolido, num episódio escabroso — na esquina da Rua dos
Inválidos com a do Riachuelo, no Rio de Janeiro, embora sobre ele exista exaustiva
documentação fotográfica e um levantamento minucioso, com todas as plantas,
feito por José Pessôa. Os alemães podem
reconstruir desde os fundamentos a Frauenkirche de Dresden, os russos podem
refazer, pedaço por pedaço, o Salão de Âmbar roubado pelos nazistas, mas para
nós, brasileiros, não é de bom tom reerguer as paredes faltantes do Solar do
Visconde de São Lourenço, para que ele abrigue algum “centro de referência” ou
alguma “ocupação”, pois de “falsificação” se trataria.
Para finalizar, se tomarmos os incêndios como
uma espécie de vandalismo por incúria, podemos lembrar, em Salvador, e no
espaço de mais de um século, o da Faculdade de Medicina, antigo Convento dos
Jesuítas, o do precioso Paço do Saldanha, o da Igreja da Barroquinha, os do
Mercado Modelo e, recentemente, o do Solar da Boa Vista, no qual viveu Castro
Alves. Neste mesmo século XXI assistimos à destruição da matriz de Pirenópolis,
a mais bela igreja do Centro-Oeste, bem como a da nave da Igreja do Carmo em
Mariana. Para encerrar, voltando ao Rio de Janeiro, lembramo-nos do incêndio da
muito histórica Igreja de N. S. do Rosário e São Benedito, o do MAM, com todo o
seu acervo, o da capela do antigo Hospício Pedro II, e, tragédia máxima e
incomensurável, a atroz destruição pelo fogo do Museu Nacional, na Quinta da
Boa Vista, que nem merece comentários.